“O trabalho escravo deve ser considerado um crime contra a humanidade”

Representante da Ordem dos Advogados do Brasil na Conatrae e juiz ad hoc da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Roberto Caldas é um dos militantes na causa do combate ao trabalho escravo no Brasil. O advogado afirma que a aprovação da PEC 438/2001 seria um mecanismo forte para auxiliar o combate ao trabalho escravo no país. Confira a entrevista:
Nos últimos tempos, muitas iniciativas de combate ao trabalho escravo têm sido intensificadas. Como está o andamento desta questão no Brasil?
Estado e sociedade civil uniram-se de modo admirável. Os procuradores do trabalho são elos fundamentais desta corrente, com os quais tenho trabalhado proficuamente como representante do Conselho Federal da OAB na Conatrae. A OAB e a maioria das entidades vêm trabalhando com foco agudo sobre este tema há cerca de dez anos, quando enfim o Estado reconheceu a gravidade dessa chaga. Nesse período, pudemos nos deparar com inúmeras irregularidades praticadas, geralmente, por grandes proprietários rurais, em diversas regiões do Brasil, embora a escravidão urbana também tenha crescido bastante nos grandes centros, com a exploração da mão de obra, sobretudo, de imigrantes ilegais. Mas é bom salientar que este não é um problema brasileiro apenas. A escravidão contemporânea pode ser encontrada em países ricos e pobres, pois seu único intuito é a exploração econômica desses trabalhadores, que não encontram caminhos adequados e qualificados de inserção no mercado de trabalho.

Muitos exploradores de trabalho humano costumam alegar que o conceito de trabalho escravo não seria muito claro no Brasil. O senhor concorda com essa linha argumentativa?
Não vejo dificuldade em se tipificar o trabalho escravo. O que vemos é a existência de situações evidentes, não apenas de descumprimento dos direitos trabalhistas, mas da própria violação de direitos humanos fundamentais, onde nos deparamos com pessoas desprovidas de qualquer elemento que lhe garanta um mínimo de dignidade para trabalhar e viver, e que têm sua liberdade restringida. Acredito que, com uma legislação concisa e eficaz, somada à possibilidade de expropriação das terras do escravagista e a atuação de magistrados que apliquem o direito como instrumento de transformação social, em breve, o trabalho escravo será erradicado em nosso país. Por isso defendo que o trabalho escravo, nos moldes praticados em nosso país, deva ser considerado um crime contra a humanidade e, como tal, seja imprescritível, para que futuros casos não escapem da punição pelas instâncias judiciais, quer no Brasil, quer no exterior.

O que falta, afinal, para a erradicação do trabalho escravo no país?
Em termos de legislação, existe a PEC 438/2001, que prevê a expropriação de terras daqueles que exploram mão de obra escrava, cujo trâmite está paralisado, aguardando votação em segundo turno pela Câmara dos Deputados, desde 2004. A aprovação dessa PEC contribuiria para o rompimento do ciclo hoje existente, no qual se identifica o proprietário mal feitor, porém, nenhuma punição recai sobre ele. O que temos visto é, na prática, a condenação de muitos escravagistas ao pagamento de cestas básicas, algo inadmissível. Isso só não basta. Há que se pensar em medidas duras e efetivas de erradicação dessa prática abominável e degradante, além de políticas de reinserção dos egressos do trabalho escravo.

A persecução criminal daqueles que exploram trabalho escravo tem sido eficaz? O que fazer para intensificar essa linha de atuação, notadamente evitando a repetição daquelas hipóteses em que os crimes acabam por prescrever?
Hoje, estima-se que existam 25 mil trabalhadores brasileiros em situação análoga à de escravo, num universo, também estimado, de 27 milhões de pessoas no mundo inteiro vítimas deste tipo de escravidão contemporânea. Um problema sério a se destacar é a impunidade gerada pela prescrição que ocorre em muitos processos criminais, especialmente em razão da indefinição da competência para julgamento desses crimes, se da Justiça Federal ou da Estadual.Em 2006, o Supremo Tribunal Federal definiu que a Justiça Federal é competente para o julgamento de casos de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão, entendimento que, sinceramente, espero que não mude. Embora aquela decisão viesse sendo confirmada em outros julgados, o debate foi reiniciado no plenário do STF em fevereiro do ano passado, por iniciativa do presidente Cezar Peluso em processo de sua relatoria (RE 459.510). O julgamento está suspenso em razão de vista regimental. Aí mais uma vez o impasse, pois os réus podem sempre suscitar a incompetência da Justiça Federal alegando que a questão está indefinida. Enquanto se debate este aspecto, levando o caso ao STF, o tempo de tramitação é tanto que o processo acaba prescrevendo, o que é lamentável por alimentar um círculo de impunidade.