“A caracterização do trabalho escravo não pode e nem deve ser reduzida a situações de restrição de liberdade, ou voltaremos ao século XIX”

A afirmação acima é do presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), Ângelo Fabiano Farias da Costa, e faz referência à portaria do Ministério do Trabalho (nº 1.129/2017), publicada nessa segunda-feira, 16/10, que alterou as regras para a fiscalização e o combate ao trabalho escravo no Brasil.  Em entrevista, o procurador destaca que um dos pontos mais preocupantes dessa portaria diz respeito aos novos conceitos para condição degradante de trabalho, jornada exaustiva e condição análoga à de escravo.

 

Ele destaca ainda que entre os pontos que mais chamam a atenção na nova portaria está o que diz respeito aos critérios para inclusão do nome de empregadores flagrados por submeter trabalhadores em condições análogas à de escravidão na lista suja de combate ao trabalho escravo, assim como restringir também a questão relativa à obtenção do seguro desemprego para aqueles que são flagrados nessas condições. A portaria traz ainda uma redefinição do conceito de trabalho escravo o que, de acordo com o presidente da ANPT, é absolutamente ilegal, já que esse conceito é trazido no Código Penal e não poderia ser levado por uma portaria de caráter “infralegal”, que tem o interesse de regulamentar.

 

Confira abaixo a entrevista com do presidente da ANPT sobre o assunto:

 

A portaria redefine o conceito de trabalho escravo. Como avalia essa mudança?

Ângelo Fabiano (AF): A portaria, a pretexto de regulamentar os critérios para concessão do seguro-desemprego de trabalhadores escravizados e para a inclusão do nome de empregadores na lista suja do trabalho escravo, redefine o conceito de trabalho em condições análogas às de escravo, restringindo-o a situações onde há a necessidade de privação da liberdade de ir e vir, como se apenas existisse trabalho escravo quando há cerceamento da liberdade de locomoção. Com isso, o Ministério do Trabalho buscou não apenas reduzir o conceito para fins de obtenção do acesso ao seguro desemprego e o número do acesso de empregadores que serão inclusos na lista suja do trabalho escravo, mas também modificar a própria conceituação do trabalho escravo para outros fins como, por exemplo, de configuração da conduta como um fato típico penal e também para efeito da própria responsabilização civil e trabalhista, por meio dessa questão de se encontrar ou não trabalho escravo, o que só pode ser feito por lei em sentido estrito.

 

A questão da fiscalização também ficou mais complicada agora, a partir da publicação da portaria?

AF: Sim, a portaria trouxe uma série de procedimentos burocráticos que dificultam a atuação dos auditores fiscais no combate a essa chaga social exigindo, por exemplo, a juntada de boletim de ocorrência lavrado por autoridade policial retirando, assim, a prerrogativa dos auditores de, por si sós, reconhecerem a caracterização do trabalho escravo. Sabemos que os auditores fiscais se subordinam às regulamentações do ministro do trabalho, então, haverá, sim, se mantida essa portaria ilegal, uma restrição da atuação e da atividade desses profissionais no combate ao trabalho em condições análogas de escravidão. Não apenas pela redução do conceito que atrela a figura do trabalho escravo, essencialmente à existência de restrição de liberdade por coação física ou moral, mas ainda por criar uma série de burocracias nesse procedimento para inclusão dos empregadores na lista suja.

 

É quase como se não levassem em consideração a escravidão contemporânea?

AF: Isso, nós sabemos que hoje o conceito do código penal com relação ao trabalho escravo envolve a questão do trabalho forçado, quando há uma restrição de liberdade, pois o trabalhador tem a sua vontade desconsiderada e acaba sendo preso naquela situação, não mediante correntes, mas a partir de uma coação física ou moral, com a presença de homens armados e vigilância ostensiva, restrição de documentos ou por estar em um lugar extremamente isolado onde ele não sabe pra onde ir ou não tem contato com alguém. A questão de servidão por dívidas, quando o trabalhador passa a trabalhar, mas, por ter que comprar diversos insumos para a sua vida, inclusive ferramentas de trabalho, uniformes, comida, bebida, acaba se endividando tanto que tem que pagar com o seu trabalho e nunca consegue liquidar aquela dívida.

 

Existem outras situações que não envolvem a questão relativa à restrição efetiva da liberdade?

AF: Sim, como por exemplo a jornada exaustiva e o trabalho degradante. A primeira acontece quando o trabalhador é submetido a uma jornada extremamente cansativa, sem observância de regras de intervalo e repouso, o que o leva a um esgotamento físico e mental. Essa é a jornada que muitas vezes não restringe efetivamente a liberdade, mas o trabalhador tem que trabalhar ao máximo, e também a questão da caracterização do trabalho degradante, quando ele é colocado em situações de trabalho ou de moradia no próprio local de trabalho em que não sejam observadas as normas mínimas de saúde, segurança ou higiene do trabalho, como, por exemplo, alojamentos precários, comida de péssima qualidade, água não potável, inexistência de banheiros adequados, etc.

 

Na prática, então, o que a portaria faz?

AF: Ela conceitua o trabalho escravo degradante e o trabalho escravo por jornada exaustiva a partir da necessidade de existência do cerceamento da liberdade de ir e vir. Com isso, as consequências serão a diminuição do número de empregadores que serão incluídos na lista suja, a redução do número de trabalhadores que terão obtenção de seguro desemprego para situação de jornada exaustiva e trabalho degradante, quando não houver a restrição da liberdade, e, por via reflexa, a eventual redução do conceito penal de trabalho escravo (art. 149 do Código Penal) e, por fim, a busca pela não responsabilização civil-trabalhista de empregados flagrados explorando a escravidão por jornada exaustiva ou por trabalho degradante onde não haja a restrição da liberdade de locomoção.

 

Mas trabalho escravo, de fato, ainda existe?

AF: Claro que sim. Em muitas situações nós vamos caracterizar o trabalho escravo mesmo onde não haja a restrição da liberdade de locomoção, então, isso aí é essencial.

 

Tramita no Senado Federal o PLS 432/2013, que visa a redefinir o conceito de trabalho escravo. Como avalia esse projeto?

AF: Esse projeto, do qual nós da ANPT e os membros do Ministério Público do Trabalho em geral somos contra, visa redefinir o conceito de trabalho escravo para fins de expropriação de terras, aquelas urbanas ou rurais, onde trabalhadores forem flagrados em trabalho escravo.  Essa legislação, que já foi muito discutida, visa redefinir esse conceito atrelando tão somente à figura de trabalho forçado e da servidão por dívida e excluindo, por conseguinte, a caracterização por jornada exaustiva e trabalho degradante. Já é um retrocesso social se essa legislação for aprovada no parlamento e, para nós, a portaria além de trazer um extremo retrocesso social também, além disso,  ela é uma patente de ilegalidade porque um ato infralegal não pode trazer uma regulamentação nesse sentido.

 

 

 

 

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