Hermenêutica da “Constituição Laboral” em tempos de trabalho performático e pejotizado

*Por Andre Royer Spies

 

O maior mal do desemprego não é a perda de riqueza adicional que se poderia

gerar com a plena ocupação: existem dois males maiores. Primeiro que o

desemprego faz com que os homens se considerem inúteis, irrelevantes e

desarraigados de seu país; segundo, que o desemprego faz com que os

homens vivam com medo, e que do medo nasce o ódio (Beweridge)

 

O Direito não pode ser mero resultado da pressão dos acontecimentos (Reale). Seu ramo penal, por exemplo, é uma história de “luta permanente” contra delinquência e criminalidade. Mutatis mutandis, a história do Direito do Trabalho pode ser entendida como a defesa do mais fraco, em nome de sua dignidade e da própria paz social.

Estes dias pós-modernos, entretanto, são tempos de incredulidade em relação aos “metarrelatos” (Lyotard), de descrença mesmo em teses legitimadoras da ciência, da cultura e da política.

Nesse panorama, a cultura do trabalho perdeu relevo enquanto instrumento de autorrealização e definidora da identidade individual (Cirri), alterando-se sua posição no “arco estrutural do indivíduo” (Lacci). Transformam-se os significados do trabalho “quase em tantos quanto são os indivíduos que trabalham”, e esse decréscimo axiológico desautoriza-o como “ocasião para o estabelecimento de uma figura humana e social fundada no nexo entre trabalho e cidadania”.

Noutras palavras, enfraqueceu o caráter central e hegemônico do trabalho como elemento de coesão social (Quesada), que de base da identidade, da segurança e do planejamento da vida, torna-se fluido e precário, para também ele  refletir a instabilidade e volatilidade das relações em geral - lastreadas agora no consumo (Bauman) ou no progresso da técnica (Habermas). Se o trabalhar é mesmo o único modo justo e digno de prover a existência (Albornoz) já constitui matéria problematizada e de pesquisa.

Prosseguem majoritárias, é verdade, posições que o consideram ontologicamente essencial e fundante da existência humana, e portanto atividade central da socialidade (Antunes), e mesmo “chave” na superação de suas próprias contradições (Dejours). Essa centralidade resiliente do trabalho continuaria expressa em vários domínios, a saber, nos papéis de forjador da individuação (Jung) e de saúde mental, de indutor de mais igualdade entre os gêneros e de evolução geral da sociedade, ou ainda de protagonismo no processo de produção (savoir faire). Constituições persistem enaltecendo-o, como a vigente Italiana do período pós-bélico (“L'Italia è una Repubblica democratica, fondata sul lavoro”)

Questões filosóficas e sociológicas, portanto, emergem no backdrop da discussão jurídica que se avizinha no julgamento da pejotização pela Corte Constitucional, cenário que convida ao chamado pensamento complexo  (Morin) que desvele com nitidez um provável falso dilema entre paternalismo x meritocracia. Lembrando que a flexicurity é uma fórmula engenhosa do capitalismo do norte que pressupõe suporte robusto de “amortecedores sociais” que garantam dignidade, mais além do que democracia formal.

Quando o viés cognitivo é o essencialmente jurídico, o thema decidendum parece resvalar para algo que há muito tempo se suspeitava: a comunidade juslaboralista carecia de mais abordagem com acento constitucional (Carlin). Dito de outra maneira, o estudo interpretativo enfraqueceu-se em alguma medida no campo dos direitos sociais, necessitando de mais formulação teórica (Francisco Gerson).

Se é assim, o momento sugere olhar dirigido do operador do Direito do Trabalho para aspectos sedimentados ou ao menos atuais da doutrina constitucional, prospectando-se o que virá do Supremo quanto ao pejotismo (o sufixo denota seu viés fraudulento), direitos sociais em geral e misteres da Justiça do Trabalho.

Mencione-se de pronto que na disputa entre os “fatores reais de poder” (Lassale) e a Constituição “jurídica” (Hesse), esta deve ser preservada de maneira que o embate não se torne simplesmente político. Para tanto será necessário cuidado com as vertentes constitucionais expressas na tríade inquebrantabilidade da norma superior/sua sintonia com a realidade/vontade de observá-la, bem como atenção a especiais pressupostos (“realizáveis”), a saber, de conteúdo da Carta (incorporação do zeitgeist/adaptabilidade/desapego a estruturas unilaterais) e de respectiva interpretação “concretizante” (precisa remanescer a “proposição normativa” a despeito das mudanças interpretativas que necessariamente advém dos cambiamentos da realidade, sob pena de necessidade sempre traumática de revisão/reforma constitucional).

Outra viga mestra do constitucionalismo contemporâneo (Streck) é a positivação dos direitos fundamentais, inclusos aqueles da “Constituição Laboral” (Ramalho). Impõe-se, destarte, que também o jurista especializado domine o que isso representa quanto a maiorias ocasionais e soberania popular, justiça constitucional, e lindes desses direitos de especial natureza. No último quesito, a propósito, dentre teorias como dos limites “internos” (dados pelo Constituinte), “externos” (dados pelo legislador quando autorizado a fazê-lo), e dos princípios (direitos fundamentais como enunciados garantidos prima facie, e eventualmente acomodados ponderativamente), destaca-se a dos princípios enquanto  “trunfos contra a maioria, e ao mesmo tempo dotados de uma reserva geral imanente de ponderação” (Novais).

Já quanto aos diferentes “critérios, cânones ou regras de interpretação”, eles detém direta relação com pretensões de racionalização/transparência/previsibilidade na aplicação do Direito. Grosso modo, os métodos de interpretação  constitucional tem sido recenseados (Mártires Coelho) em clássico; tópico problemático; hermenêutico-concretizador; científico-espiritual, normativo-estruturante e comparatístico. O primeiro trata a Constituição como qualquer lei para descobrir seu sentido através da voluntas legislatoris e/ou da própria voluntas legis (aquela que pode emergir a despeito da vontade do escriba). Abrange os tradicionais elementos de Savigny (genético, filológico, lógico, histórico e sistemático), tão bem dissecados, por aqui, em Maximiliano, em época em que o procedimento subsuntivo reinava unívoco.

Os demais métodos, salvo o último, derivam do chamado “giro linguístico” - uma nova forma de compreender as fontes, as normas, e o que é interpretar. Assim, se a) na atualidade o Direito, para além de sistema legislativo positivado, consagra princípios, que por sua vez devem ser realizados via promoção dos direitos fundamentais e da democracia, e se  b) conhecer/interpretar/aplicar são agora um processo unitário (Gadamer), ao hermeneuta não é correto simplesmente pretender revelar vontades, “pois impossível desconsiderar a modificação e a alteração compreensiva que advém das questões históricas” (Moreira/Tovar).

O método tópico-problemático configura uma espécie de decorrência do “caráter fragmentário e frequentemente indeterminado da Constituição” (Böckenförde),  de modo que se “a tópica é a técnica do pensamento problemático” (Viehweg), e se a Constituição, graças a sua abertura e pluralismo, mostra-se muito “mais problemática do que sistemática”, apresenta-se “natural o recurso do processo tópico orientado ao problema”. Ilustra uma espécie de processualização da visão do Direito, onde preponderará o melhor argumento.

O método hermenêutico-concretizador focaliza na “situação hermenêutica” (“momento/ambiente em que o problema é posto a exame”), mas com a análise ancorada no próprio texto constitucional como limite (“aplicar significa pensar, conjuntamente, o caso e a lei, de modo que o direito se concretize”).  

No método científico-espiritual a Constituição é instrumento ordenador da dinâmica social. Logo permite e “exige uma interpretação extensiva e flexível, em larga medida diferente de outras formas de interpretação jurídica, sem necessidade de que seu texto contenha qualquer disposição nesse sentido”. Daí se caracterizarem as formas constitucionais precisamente pela sua “elasticidade e capacidade de autotransformação, regeneração e preenchimento das próprias lacunas” (Smend).

Para o método normativo-estruturante a normatividade (F. Muller) não é produzida pelo texto, antes resulta de dados extralinguísticos, de uma “atuação efetiva do ordenamento constitucional perante motivações empíricas na sua área de operação”. Em face dessa “abertura para uma espécie de infinito jurídico”, o interprete transforma “em seus considerandos” tudo quanto lhe pareça adequado à situação “normada” (Reale) em que se encontra, e que “possa captar no manancial inesgotável da sua experiência jurídica, em permanente devir”.

Finalmente, no derradeiro método, se defende a “canonização” (Häberle) da comparatística, ao menos em sede do estudo da Constituição, cuja geografia jurídica (M. Ancel) demandaria instrumentos peculiares de análise, como através da auteridade compreender-se o próprio ordenamento.

Tais “revoluções paradigmáticas” fizeram circular as teorias de Alexy e Dworkin sobre a ponderação entre princípios, na obra deste um mecanismo enriquecido pelas noções de respeito à “integridade do Direito” (história institucional de aplicação do instituto), e da diferença entre regras, princípios (“padrão a ser observado não para promoção ou asseguramento de situação econômica/política/social desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão de moralidade”), e diretrizes políticas. Modernamente, a doutrina de Lênio Streck prega certo aglutinar entre os escritos de Dworkin e Gadamer (interpretar é aplicar ao caso concreto), para assegurar um minimum applicandi: preservação do Direito (mantido livre de pressões políticas e econômicas); controle interpretativo, e garantias de fundamentação adequada, de respeito à história institucional do Direito, e do julgamento “a partir da Constituição”. Isso redundará em hipóteses de afastamento da lei por questões de (in)constitucionalidade, antinomias, interpretação conforme, nulidade parcial sem ou com redução de texto, ou de principiologia.

Concluindo-se esse rápido censo, de registrar que a ética também vem sendo enaltecida (Álvarez Viana), de modo que o magistrado deve através dela sentir-se concitado a agir de acordo com a “consciência jurídica geral”, e não a partir de suas íntimas e pré-concebidas concepções.

De todo o dito, a vastidão do mosaico de possibilidades interpretativas dificulta esforço preditivo quanto aos contornos do iminente julgamento do pejotismo na Corte Constitucional, ainda que opiniões sobre o que seriam as  ideias de cada ministro sobre o mundo do trabalho (manifestadas em casos correlatos ou fora dos autos) fomentem apostas sobre o resultado. Futura linha argumentativa pode, exemplificativamente, lastrear-se no pensamento de Hesse que não recomenda “estruturas unilaterais” na Lex Legum. A circunstância, quanto ao que nos interessa, potencialmente embasaria conclusão de que os direitos fundamentais do artigo sétimo são apenas para empregados formalmente contratados pela CLT, sendo admissível, nessa senda, crescimento exponencial de pejotizados em nosso mercado de trabalho.  O debate também poderá priorizar a “situação hermenêutica”, qual seja, o notório cenário de  desinteresse do capitalismo na estimulação do emprego tradicional diante das novas tecnologias. Esse concerto tenderia a ratificar premissas sobre atenuação da subordinação, e consequente chancela do discurso meritocrático em nome da liberdade.

Por outro lado, a “situação normada” pode indicar que a superestrutura estatal (Marx) não se encontra preparada para severa desregulamentação do modelo trabalhista. No cenário, o método normativo-estruturante recomendaria a desaprovação do modelo pejotizador – ao menos na versão radical que ignora o “contrato-realidade” (Plá-Rodriguez) e o orçamento público da área social. Ainda em outro passo, exemplos de países centrais poderão ser comparativamente invocados tanto para reforço do trabalho regulamentado, como do flexibilizado, e, de resto, a ponderação e a proporcionalidade podem entrar em campo no sopesamento dos princípios da valorização social do trabalho x livre iniciativa/liberdade econômica. Tudo em um “balançar de olhos” (K. Engish) entre “substrato e sentido”, que permita que visões pré-concebidas não presidam dramaticamente o evento, tampouco os “discursos adjudicativos (...) da economia, da política” e os “pragmatismos de toda espécie” (Streck). Nessa hipótese, nem mesmo o respeito à história institucional do Direito do Trabalho é indicador seguro, porque tanto poderá acenar para a dignidade do trabalhador, como apontar para o dinamismo do arcabouço do respectivo ramo – o que, no dizer de Barbosa Moreira, confirmaria que o Direito é conformado pelo Econômico e pelo Social, e não o contrário.

Diante dessa amplitude dos recursos hermenêuticos ora superficialmente mencionados, que para uns atentam contra a força normativa da Constituição, para outros enriquecem sua interpretação concretizadora, talvez fosse mais simples e efetivo, em sede de pejotização, a invocação da invalidade inserta no artigo 167 do Código Civil Brasileiro. Todavia, decidir sobre o fenômeno coube à Corte Constitucional, restando aos operadores do Direito do Trabalho, enquanto integrantes da sociedade aberta (Häberle) dos interpretes da Carta, uma postura respeitosa de auxílio e de defesa da racionalidade, transparência e previsibilidade das decisões. Na verdade, subjaz aqui, outra vez, a velha querela jurídica (Kanilowski), do Direito enquanto ciência, ou poder. E não seria exagero dizer que se trata de um julgamento histórico a exigir erudição e visão de futuro compatíveis com os desafios da “sociedade do desempenho” (Byung-Chul Han).

*Mestre em Direito Constitucional (Universidade de Sevilha). Doutor em Autonomia Privada, Empresa, Trabalho e Tutela dos Direitos na Perspectiva Europeia e Internacional (Universidade La Sapienza/Roma). Subprocurador-geral e atual ouvidor do Ministério Público do Trabalho

Autor(es)
ANDRE LUIS ROYER SPIES

ANDRE LUIS ROYER SPIES

PGT

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