Proteção Integral e Profissionalização: Interfaces entre o Transfeminismo Jurídico e o acesso ao trabalho decente para as pessoas trans em desenvolvimento

*Por Clarisse Mack e Tiago Ranieri de Oliveira

RESUMO: A problemática do abuso e exploração infantil no Brasil é uma realidade que, ao ser observada sob a ótica das adolescências trans, adquire nuances específicas que precisam ser consideradas. A divisão transexual do trabalho, conceito desenvolvido pelo transfeminismo jurídico, evidencia um cenário de prostituição compulsória e precariedade nas relações formais de trabalho. Essa situação demanda a implementação de políticas públicas sociais eficazes que protejam crianças e adolescentes trans. O presente estudo tem como objetivo analisar como a profissionalização, por meio da aprendizagem, à luz de uma releitura do princípio da proteção integral e prioridade absoluta, pode se configurar como uma estratégia poderosa para o enfrentamento dessas violências. Propõe-se que a atuação do Ministério Público do Trabalho, tanto na fiscalização do cumprimento das normas de proteção às adolescências trans quanto na proposição de programas de aprendizagem que respeitem suas especificidades, seja uma estratégia relevante para promover mudanças sociais concretas. Metodologicamente, o estudo utiliza uma abordagem qualitativa, com pesquisa bibliográfica, documental e normativa, visando à análise de conceitos teóricos, legislações e normas jurídicas. O embasamento principal se apoia nas formulações do transfeminismo jurídico, que oferece uma base teórica sólida para fundamentar as discussões. Conclui-se que a criação e o fortalecimento de políticas públicas inclusivas são essenciais para garantir a proteção e os direitos das adolescências trans no contexto laboral.

PALAVRAS-CHAVE: Proteção Integral. Transfeminismo Jurídico. Pessoas Trans.

 

INTRODUÇÃO

            A negação do trabalho decente condena pessoas trans à prostituição compulsória e formalização precária. A profissionalização via aprendizagem surge como estratégia essencial para proteger crianças e adolescentes trans. Neste sentido, esta pesquisa investiga como essa profissionalização pode transformar suas vidas em conformidade com a proteção integral.

Com base no transfeminismo jurídico, propomos: a) uma releitura dos direitos da infância; b) políticas públicas para aprendizagem e profissionalização; c) diretrizes para a promoção de seus direitos, com destaque para o Ministério Público do Trabalho.

Concluímos que garantir o acesso ao trabalho decente é essencial para romper com as duras estatísticas que atingem a população trans.

1 UMA (RE)LEITURA DA PROTEÇÃO INTEGRAL ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES À LUZ DO TRANSFEMINISMO JURÍDICO

O transfeminismo jurídico é uma proposta teórico-epistemológica contemporânea que resgata os saberes e elaborações teóricas das pessoas trans a partir de uma (re)leitura da epistemologia jurídica tradicional e hegemônica, baseada em perspectivas como a decolonialidade jurídica, o direito das subalternidades, o direito antidiscriminatório, o feminismo jurídico, o direito achado na rua e o pluralismo jurídico (MACK, 2024). Defendemos que essa corrente teórica pode ser utilizada para analisar qualquer ramo jurídico sob a ótica da comunidade trans e de pessoas dissidentes de gênero. Nesse sentido, é essencial examinar, por meio de uma pesquisa documental normativa e descritivo-analítica, como as normas jurídicas que tratam dos direitos de crianças e adolescentes podem ser interpretadas à luz do transfeminismo jurídico para garantir a máxima proteção integral às infâncias e adolescências trans.

Como defendemos em trabalho anterior (MACK, 2024a), as ciências jurídicas, enquanto produto desse processo colonizador, não estão isentas dessa cisnormatividade e, quando incorporam essa lógica, tornam-se expressão da cisnormatividade jurídica. Essa estrutura exclui pessoas trans do acesso à justiça, gera múltiplas violações de direitos humanos, impede a formulação de políticas públicas inclusivas sobre identidade de gênero e reforça os mecanismos de opressão e apagamento dessas existências.

            Entendemos também que a cisnormatividade jurídica é parte de uma violência estrutural maior, a necrotransfobia, a qualrevela a condição estrutural socialmente estabelecida na sociedade colonial brasileira de aversão, ódio, pavor, nojo, e sobretudo, morte e mortandade, destinada a toda a população trans, mas em particular às travestilidades” (MACK, 2024, p. 35)

            No que tange especificamente às crianças e adolescentes, questionamos: ora, se existem crianças cisgêneras, não haveria de existir crianças transgêneras? E se nosso ordenamento jurídico se baseia na dignidade humana como preceito fundamental, não teria essas crianças e adolescentes igual oportunidade de proteção jurídica? 

            Nossas crianças e adolescentes trans merecem igual proteção jurídica como qualquer outra criança e/ou adolescente não dissidente de gênero. Por isso, passemos a uma análise sob a perspectiva do transfeminismo jurídico no que tange aos direitos das crianças e adolescentes a partir da inclusão das trans-adolescências à proteção integral.

1.1 (Re)lendo as normas internacionais e constitucionais de proteção às crianças e adolescentes sob à égide do transfeminismo jurídico

            Em termos de normativas internacionais de proteção integral às crianças e adolescentes, desde 1924, com a Convenção de Genebra sobre os Direitos da Criança, há uma preocupação de resguardá-las da discriminação e preconceito. Logo em seu preâmbulo, há a necessidade e dever de toda a humanidade de garantir a elas o melhor, independentemente de qualquer marcador ou atravessamento, bem como a garantia de seu pleno desenvolvimento (art. 1º). Destacamos também o art. 4º que preconiza “A criança deve ter meios de subsistência e deve ser protegida contra toda exploração”, uma vez que em uma leitura transfeminista, sabemos que se não resguardamos as crianças e adolescentes trans da exploração, essa será, em sua grande parte, sua realidade futura. 

            A Convenção internacional mencionada destaca a importância da não discriminação, o que resulta por um lado na necessidade de protegê-las da violência em função das diferenças, mas também de reconhecer as especificidades que as diferenciam. Além disso, há uma realidade intrínseca de exploração voltada às pessoas trans adultas, a qual se não for combatida desde a mais tenra idade, pela proteção das infâncias dissidentes de gênero, não se romperá o ciclo de exploração e violência que se alimenta e retroalimenta pela violência transfóbica intrafamiliar, depois pela violência transfóbica educacional, depois pela violência transfóbica laboral, e por fim pelos trans-assassinatos. 

            A realidade exploratória que marca a existência de tantas pessoas trans no Brasil só será revertida caso essa exploração seja impedida de ocorrer desde a proteção das trans-infantilidades. 

            A importante Convenção Sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), documento mais abrangente sobre o tema, traz em seu bojo uma série de direitos, de diferentes dimensões de direitos humanos, tendo também como princípio a proteção contra toda e qualquer forma de discriminação e exploração. 

            Destaca-se novamente o caráter antidiscriminatório das normas protetivas de direitos humanos para crianças e adolescentes quando em seu preâmbulo afirma:

Reconhecendo que as Nações Unidas proclamaram e concordaram, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos pactos internacionais de direitos humanos, que todas as pessoas possuem todos os direitos e liberdades neles enunciados, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião políticaou de outra natureza, seja de origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição

(CONVENÇÃO, 1989, grifo nosso)

Registra-se, ainda, os Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e à Identidade de Gênero, destacando em especial os princípios 11 e 12, os quais preconizam, respectivamente, o direito à proteção a todas as formas de exploração, venda e tráfico de seres humanos, bem como, o direito ao trabalho.     

Apesar de, pela cisnormatividade jurídica, não haver menção direta a identidade de gênero, como marcador discriminatório, nas normas internacionais de direitos humanos de crianças e adolescentes, há de se destacar novamente o caráter não taxativo, mas exemplificativo, das condições de diferença, além da declaração de que “qualquer outra natureza” ou “qualquer outra condição” fundamentar a inclusão das crianças e adolescentes trans nesta proteção. 

            Salientamos também que a Convenção busca compreender as especificidades de crianças e adolescentes quando diz que “reconhecendo que, em todos os países do mundo, existem crianças vivendo em condições excepcionalmente difíceis, e que essas crianças precisam de considerações especiais”. Ora, o Brasil, por quinze anos consecutivos é o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2024) e do Trans Murder Monitoring, além de essas pessoas terem uma expectativa de vida de trinta e cinco anos.

            No que diz respeito ao nome social e ao nome retificado, o primeiro encontra empecilhos em muitas instituições, apesar de garantido pelo Decreto 8.727 desde 2016. Ainda, há situações onde há a manutenção do constrangimento e das situações vexatórias para com crianças e adolescentes trans que desejam ser chamados pelo nome social, mas que não encontram sensibilidade e apoio dos pais. Além disso, quando falamos de nome retificado, mesmo adolescentes com 16 anos e que podem votar, necessitam da autorização dos pais e do juiz para terem o nome conforme sua própria identidade. 

            Perguntamos, então: essas não seriam condições excepcionalmente difíceis? Não deveríamos refletir acerca dessas considerações especiais destacadas na Convenção? 

            O Protocolo Facultativo à Convenção Sobre os Direitos da Criança de 2000, dentre outros aspectos destaca a necessidade de proteção ante a prostituição infantil. Considerando a realidade de não trabalho que, a partir da divisão transexual do trabalho, empurra pessoas trans para a prostituição como única fonte de subsistência (Leite e Mack, 2024), entendemos que partir da premissa da promoção do trabalho decente desde a fase de desenvolvimento se configura como boa estratégia de proteção ante tal realidade. 

            Sob essa perspectiva podemos destacar também a Convenção nº 182 da OIT sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil (1999), que busca eliminar as piores formas de trabalho infantil, como a escravidão, tráfico, prostituição, trabalho forçado e atividades perigosas.

            Ainda, a Constituição Federal assegura a proteção integral às crianças e adolescentes, fundamentada na dignidade humana e na não discriminação (art. 1º, III e art. 3º, IV), garantindo prioridade absoluta a seus direitos (art. 227) como dever solidário da Família, Sociedade e Estado.

Dentre essas garantias, destacamos a profissionalização, dignidade e respeito, bem como a proteção contra práticas discriminatórias. Essa inclinação normativa alinha-se ao princípio do valor social do trabalho, que, além do caráter protetivo, envolve o acesso ao emprego como elemento da cidadania (Araújo, 2019), prevenindo exploração e abuso infantojuvenil, cabendo ao Ministério Público do Trabalho sua fiscalização.

1.2 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também é (e deve ser) o Estatuto da Criança e do Adolescente Trans 

 

            Como podemos perceber, as normas internacionais e nacionais de proteção às pessoas em desenvolvimento garantem uma proteção integral, assegurando tanto o acesso a direitos fundamentais quanto o reconhecimento da dignidade de crianças e adolescentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fundamentado nessa perspectiva, determina em seu art. 3º que esses sujeitos possuem todos os direitos fundamentais, com foco em seu desenvolvimento multidimensional e no respeito à sua liberdade e dignidade. Além disso, seu parágrafo único reforça a perspectiva antidiscriminatória, garantindo que todos os direitos previstos sejam aplicados sem discriminação.

            O caráter antidiscriminatório e inclusivo da norma supramencionada ainda é reforçado em seus artigos 17 e 18, sendo, respectivamente, a elaboração do direito ao respeito com a preservação, dentre outros aspectos, da sua identidade, bem como o zelo pela dignidade humana com a manutenção de sua preservação ante a qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. 

            Em termos de uma revisão e hermenêutica sistemática da norma, o art. 7º sob a ótica de não discriminação afirma que a vida das crianças e adolescentes deve ser pautada em um desenvolvimento “sadio e harmonioso” e “em condições dignas de existência”, ao passo que em se tratando de liberdade e dignidade, respeitado o desenvolvimento, há de se garantir, dentre outros aspectos a liberdade de expressão, participação da vida comunitária e familiar sem discriminação e a proteção contra as diversas formas de violência. 

            O capítulo V do ECA traz em seu texto uma série de determinações em relação à profissionalização e proteção no trabalho, entendendo-as como direito público subjetivo da criança e do adolescente.

Entendemos que, em conformidade com a Constituição Federal de 1988, a própria lei infraconstitucional aqui analisada, também compreende o trabalho como parte inerente e importante do próprio desenvolvimento do ser humano, ressalvadas as especificidades necessárias. Desse modo, a cidadania, a própria educação e os demais direitos e garantias constitucionais acabam por se relacionar diretamente à garantia de condições de acesso e permanência desses sujeitos em desenvolvimento, no trabalho. 

            Entende-se, segundo a lógica hermenêutica sistemática e integrada, que o ordenamento jurídico pátrio valoriza de forma substancial o acesso ao trabalho decente como parte da construção da própria cidadania e da fraternidade social, sendo um instrumento transformador e de relevância e que contribui diretamente para o próprio desenvolvimento da criança e do adolescente e, consequentemente, da própria sociedade. 

            Sob esse viés, para que tenhamos um ponto de partida em toda esta (re)leitura dos direitos das crianças/adolescentes à luz do transfeminismo jurídico no que diz respeito às trans-identidades, acreditamos que parte significativa deste esforço perpassa pelo acesso ao trabalho protegido digno e decente, através da profissionalização por meio da aprendizagem e neste sentido o Ministério Público do Trabalho (MPT), por intermédio da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes (COORDINFANCIA),  tem um papel, junto a outros órgãos e instituições, na garantia da mudança de paradigma de dignidade e existência para com as pessoas trans, protegendo as infâncias/adolescências, garantindo distância da exploração e do abuso.      

2 A NECESSIDADE DE PROMOÇÃO DA PROFISSIONALIZAÇÃO E APRENDIZAGEM COMO POLÍTICA PÚBLICA DE PROTEÇÃO AS INFÂNCIAS TRANS 

            Partimos da premissa que a garantia do trabalho decente permite a construção da subjetividade social, da cidadania e da elaboração do ser enquanto sujeito de direitos, como defende Araújo (2019). Como o autor menciona, o trabalho é um direito-plataforma, que garante o acesso a outros direitos, como alimentação adequada, moradia, transporte e participação social. É a partir dele que os cidadãos podem sentir-se como cidadãos do mundo e participarem do desenvolvimento social. 

            Trabalho e desenvolvimento devem ser vistos como lados da mesma moeda, uma vez que são interdependentes, e se garantirmos que haja o seu devido acesso, por meio de programas de aprendizagem, onde a profissionalização garantirá uma renda sem prejudicar os estudos, impediremos a exploração e o abuso por meio da prostituição compulsória a qual tantas meninas e mulheres trans são submetidas. 

            Precisamos, portanto, salvar nossas crianças e adolescentes trans do abuso e da exploração, baseadas na prostituição compulsória, que assola 90 em cada 100 mulheres trans e travestis do Brasil (ANTRA, 2018), pois só assim poderemos dar a partida para outras mudanças sócio-jurídicas. 

            Incluir as pessoas trans em desenvolvimento em programas de aprendizagem parece ser a melhor estratégia para impedir que sejam mortas, exploradas sexualmente, e violentadas, como ocorre diuturnamente para com as pessoas trans em geral no nosso país.

Conforme podemos deduzir das compreensões teóricas mencionadas acima, há uma clara e evidente necessidade de elaboração de uma política pública sócio-laboral com ênfase em contratos de aprendizagem para crianças e adolescentes trans, como forma de combate às violências necrotransfóbicas e meio de prevenção de um futuro voltado à prostituição compulsória e/ou à formalidade precária.

            Podemos extrair esta realidade do que denominamos, em consonância com a epistemologia do transfeminismo jurídico, de divisão transexual do trabalho, baseada nas raízes coloniais da cisnormatividade, e que utiliza da identidade de gênero trans para marginalizar corpos, identidades e vivências.

Oliveira (2019) esclarece acerca do tema que há um messionismo patronal que eleva a figura do patrão a de messias e salvador, abrindo margem ao desrespeito e assédio em prol da manutenção do trabalho, mesmo que precário. Assim, conforme ensina o autor, a realidade das pessoas trans no que tange à dimensão do trabalho, se materializa pela prostituição constituída como ilegal ou pela formalidade precarizada.

            Em nossas produções também entendemos que há uma divisão transexual do trabalho, que assim como a divisão sexual, estabelece os lugares sociais no que tange as relações laborais baseando-se não no entendimento tradicional que separa as pessoas em dois sexos, mas na exclusão entre dois aspectos humanos, a cisgeneridade e a transgeneridade.

Às pessoas cis são dadas as maiores possibilidades de trabalho e renda, mas às pessoas trans parece restar apenas a prostituição, trabalhos informais estigmatizados ou a formalidade precária, baseada em relações de poder.

            Para que se evite que esse ciclo que se retroalimente e continue como a única realidade das pessoas trans, é a partir da efetiva e plena proteção dos adolescentes e crianças trans que entendemos ser o melhor caminho. Ora, se garantirmos que essas pessoas tenham acesso a um trabalho digno e decente, com acesso a renda, em contratos de aprendizagem, baseados na profissionalização, sem abandono escolar, romperemos com a lógica necrotransfóbica que se mantém a partir da expulsão dos lares, da expulsão escolar, da negação do pleno emprego e, por fim, do trans-assassinato.

            Desse modo, o Ministério Público do Trabalho, pelo combate ao trabalho infantil e promoção da fiscalização da aprendizagem, em especial, com ênfase na política social de aprendizagem da transgeneridade, é o órgão responsável e garantidor para não manutenção dessa lógica excludente e discriminatória para com os adolescentes trans.          

O texto constitucional é nítido, no sentido de esclarecer que cabe a este órgão essencial da justiça a defesa, dentre outros aspectos, a garantia dos interesses sociais e individuais, ainda mais quando se trata de crianças e adolescentes, quando afirma em seu artigo 127 que “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

            Sob esse viés, conforme orientação dada pelo Corte Interamericana de Direitos Humanos no Parecer Consultivo – OC24/2017, a população LGBTQIA+ e a população trans como parte desta, é reconhecidamente um grupo vítima de múltiplas violências estruturais, incluindo as por parte dos Estados Nacionais. Dessa forma, as crianças e adolescentes trans são um grupo multivulnerável, naturalmente, por serem pessoas em desenvolvimento, socialmente, por terem uma identidade de gênero divergente.

2.1 Transgeneridade na infância e adolescência: desafios e dificuldades

            São muitas as violações de direitos que as crianças e adolescentes trans vivenciam em nosso país, a começar pelo apagamento de suas existências. Nem sequer o direito à existência lhes é garantido. Se a existência precede a essência, como afirma Sartre, às pessoas Trans parece que lhes é negado até o direito de existir, apenas surgimos nesse mundo sem possibilidade de ser.

            Com isso, não se compreende as suas especificidades, desde o direito a uma saúde com equipe multidisciplinar que realize o acompanhando e que possa munir de ferramentas que lhes garanta proteção contra violências, até a promoção de sua defesa diante das famílias violadoras, com uma ausência de atuação dos conselhos tutelares e demais órgãos de proteção.

            O direito dos banheiros também impede inúmeras crianças e adolescentes trans de continuarem nas escolas, havendo a devida expulsão escolar. Falamos em expulsão porque a evasão se configura como eufemismo diante das inúmeras violências vividas. A escola as expulsa. Expulsa quando desrespeita o nome social, quando não lhes garante o uso adequado dos banheiros, quando faz vista grossa ante qualquer transfobia vestida de “bullying”.

            Assim, as instituições mais importantes do desenvolvimento da criança e do adolescente, a família, a escola e a sociedade, são as que mais violam os seus direitos e aquelas que são responsáveis pela fiscalização e proteção desses direitos, como o Conselho Tutelar, não tem preparo suficiente para lidar com a questão ou quando tem parece ser inerte ou não dar a devida importância a causa.

2.3 Meios de implementação de uma política pública social de aprendizagem para crianças e adolescentes trans

Ante as violações de direitos e o cenário de violência que assola ou que pode determinar a realidade das crianças e adolescentes trans, propomos algumas medidas de prevenção que podem servir como base para outra realidade: exigência de percentual (ações afirmativas - cotas) em programas de aprendizagem e profissionalização do Sistema S e/ou outras entidades qualificadoras; formação/letramento em gestão de diversidade e inclusão para empresas e setor público; garantia de direitos em um programa completo de ensino aprendizagem que considere as nuances desta população, como nome social e banheiros em consonância com a identidade de gênero; foco em permanência, proteção, progressão na carreira e não meramente em contratação e acesso.

            A garantia de um percentual reservado de adolescentes trans em programas de aprendizagem e profissionalização se mostra como essencial no sentido de corrigir desigualdades, reparar danos sociais e promover a presença nestes ambientes, protegendo-as da dureza da divisão transexual do trabalho.

As estatísticas da população trans sempre apontam para a necessidade de políticas afirmativas e no contexto do trabalho decente não é diferente, resultando na necessidade de reparação afirmativa, o que pode gerar resultados benéficos tão produtivos quanto as política de cotas raciais nas universidades.

Entretanto, não se trata apenas de garantir o acesso, mas a permanência, não se trata de premiar empresas como “baluartes da diversidade”, quando na prática esses sujeitos não se sentem incluídos.

Por isso, se faz necessária a construção de formações/letramentos em gestão de diversidade e inclusão para empresas e setor público, e a elaboração de documentos/protocolos/fluxos que fundamentem um plano corporativo ou institucional de diversidade, com ênfase na garantia de direitos básicos da comunidade trans, e que resultem na devida mudança da cultura organizacional, transformando-a em inclusiva e diversa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Diante deste cenário desafiador, mas repleto de possibilidades, a partir de uma releitura institucional fundamentada no transfeminismo jurídico, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem se destacado como protagonista em ações afirmativas voltadas à inclusão da população trans.

Exemplos concretos dessa atuação são a Portaria nº 844/2024, que institui a reserva de vagas (cotas) para pessoas trans e minorias étnico-raciais nas contratações de estagiários(as), e a Portaria nº 845/2024, que amplia essa política às contratações de mão de obra terceirizada.

Ademais, a Resolução CSMPT nº 198/2022 demonstra avanço significativo ao incluir, no artigo 110, a política de reserva de 3% das vagas para candidatos(as) transgênero nos concursos para ingresso na carreira de procurador(a) do trabalho, reforçando o compromisso do MPT com a diversidade e a inclusão.

No entanto, essas iniciativas internas precisam ser não apenas pioneiras, mas também inspiradoras e normativas para toda a atuação finalística da instituição. Em especial, a COORDINFÂNCIA deve garantir que tais políticas sejam articuladas com a promoção da aprendizagem profissional, fortalecendo o acesso de pessoas trans não apenas aos quadros da própria instituição, mas também a todos os espaços públicos e privados, especialmente os de poder. Assim, estaremos avançando em direção a um mercado de trabalho mais justo, inclusivo e representativo.

REFERÊNCIAS

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Autor(es)
TIAGO RANIERI DE OLIVEIRA

TIAGO RANIERI DE OLIVEIRA

PRT 18ª/GO

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