Trabalho digno é cláusula de humanidade. Pessoas não são CNPJ

*Por Tiago Ranieri de Oliveira

A pejotização consolidou-se, no Brasil, como uma das expressões mais complexas do neoliberalismo tardio aplicado às relações de trabalho. O termo designa o processo em que trabalhadores, muitas vezes sob coerção econômica ou simbólica, são levados a constituir pessoa jurídica para a execução de atividades que, na prática, mantêm os elementos típicos da relação de emprego: subordinação, habitualidade, pessoalidade e onerosidade.

O debate foi retomado com força nas audiências públicas do Supremo Tribunal Federal e da Câmara dos Deputados, nas quais a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT) apresentou dados e fundamentos que demonstram os efeitos deletérios dessa prática sobre os direitos trabalhistas e sobre o pacto civilizatório instituído pela Constituição de 1988.

Como afirmou o Advogado-Geral da União, Jorge Messias, em sua exposição ao STF: “A pejotização tem se revelado uma cupinização dos direitos trabalhistas.”

Essa metáfora revela o caráter insidioso do fenômeno: uma destruição lenta e silenciosa das bases que sustentam a dignidade do trabalho humano.

A leitura de Ricardo Antunes é fundamental para compreender a pejotização como parte de um processo histórico mais amplo de precarização estrutural do trabalho. Em O Privilégio da Servidão (2018), Antunes observa que a flexibilização e a desproteção não são mais exceções, mas condição central da acumulação capitalista contemporânea.

A pejotização, nesse sentido, não é apenas uma técnica de gestão empresarial, mas um dispositivo político e ideológico. Ela converte o trabalhador em “empreendedor de si mesmo”, dissolvendo os vínculos coletivos e deslocando o risco econômico para o indivíduo. Essa mutação subjetiva — do trabalhador assalariado para o prestador de serviços — representa, segundo Antunes, a culminância da servidão voluntária moderna, em que o sujeito explora a si mesmo acreditando exercer autonomia.

Entre os efeitos concretos dessa forma de contratação destacam-se a perda de direitos sociais básicos (férias, FGTS, 13º salário, previdência), a redução média de 30% a 40% da remuneração real, o aumento de transtornos mentais relacionados ao trabalho e o enfraquecimento das organizações coletivas e sindicais.

Antunes denomina esse novo cenário de “capitalismo digital e desmaterializado”, no qual a conexão permanente e a lógica das plataformas reconfiguram o tempo, o corpo e a subjetividade do trabalhador.

Se Antunes descreve a materialidade da precarização, Byung-Chul Han oferece a chave para compreender sua dimensão psíquica e simbólica. Em Sociedade do Cansaço (2017) e Psicopolítica (2015), o filósofo sul-coreano identifica o surgimento do sujeito neoliberal do desempenho, que internaliza a coerção e transforma a liberdade em obrigação de performar.

“O sujeito do desempenho é ao mesmo tempo senhor e escravo. Ele é empresário de si mesmo e explorador de si mesmo.” — Han (2015)

A pejotização é a expressão econômica desse paradigma. O trabalhador “PJ” acredita gerir a própria carreira, quando, na verdade, está submetido a uma forma de dominação difusa e autoinfligida.

O medo do desemprego e o ideal de autonomia convertem-se em ferramentas de controle emocional, produzindo o que Han chama de autoexploração eficiente: um poder que não oprime, mas seduz. O resultado é o cansaço coletivo, a exaustão de corpos e mentes, incapazes de resistência política ou de imaginação solidária.

A leitura conjugada de Antunes e Han permite enxergar a pejotização como fenômeno total: econômico, jurídico e subjetivo. O corpo do trabalhador é explorado pela precarização; sua alma, capturada pela psicopolítica. É o casamento perfeito entre a racionalidade econômica do capital e a governamentalidade neoliberal das subjetividades.

A pejotização, portanto, não apenas frauda direitos, ela produz subjetividades dóceis. Não é apenas uma técnica contratual, mas uma forma de poder.

A pejotização não é apenas um fenômeno jurídico de fraude à legislação trabalhista, mas um processo político de erosão da cidadania e do sentido ético do trabalho. O seu combate deve ser entendido como defesa da dignidade humana, expressão do valor social do trabalho e da justiça social previstos na Constituição Federal (art. 1º, III e IV, e art. 170).

É dever do Ministério Público do Trabalho, e de todas as instituições comprometidas com o Estado Democrático de Direito, atuar não apenas na correção de fraudes, mas na reconstrução cultural e simbólica do valor do trabalho como fundamento de uma sociedade justa.

O enfrentamento desse fenômeno exige o reconhecimento de que a liberdade sem proteção gera servidão e que a autonomia sem direitos é uma ficção conveniente ao capital. Reafirmar o trabalho como direito fundamental é também reafirmar a própria condição humana frente à máquina da eficiência e do desempenho.

A pejotização é uma forma contemporânea de servidão travestida de autonomia. Ela sintetiza a lógica neoliberal que, ao fragmentar os laços coletivos, transforma o indivíduo em gestor de sua própria exploração. Entre a retórica da liberdade e a prática da precariedade, o sujeito neoliberal adoece de cansaço, culpa e solidão.

O enfrentamento desse fenômeno exige não apenas reformas jurídicas, mas reconstrução ética e política. É preciso restituir ao trabalho seu sentido humano, comunitário e emancipador.

Trabalho digno é cláusula de humanidade. Pessoas não são CNPJ.

Referências

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

ANTUNES, Ricardo. Corpos digitais e subjetividades conectadas. São Paulo: Boitempo, 2020.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Lisboa: Relógio D’Água, 2015.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES E DAS PROCURADORAS DO TRABALHO (ANPT). Nota Técnica sobre a pejotização e o risco à dignidade do trabalho. Brasília, 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Nova York, 2015.

* Procurador do Trabalho – Diretor Legislativo da Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho.

Autor(es)
TIAGO RANIERI DE OLIVEIRA

TIAGO RANIERI DE OLIVEIRA

PRT 18ª/GO

Os artigos publicados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam, necessariamente, a opinião da ANPT.