Na última segunda-feira (9), durante audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o procurador do Trabalho Tadeu Henrique Lopes da Cunha, representante da Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT), destacou questões essenciais que devem ser observadas ao se tratar de trabalho em plataformas digitais. A Suprema Corte promoveu o evento, que teve duração de dois dias, com o objetivo de discutir a possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício entre motoristas de aplicativos de transporte e as empresas que administram essas plataformas.
O debate foi conduzido pelo ministro Edson Fachin e o tema é objeto do Recurso Extraordinário (RE 1446336), apresentado pela Uber A matéria teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.291), cuja tese fixada no julgamento será aplicada a todos os casos em tramitação no Judiciário brasileiro.
Em sua manifestação, o procurador ressaltou que a associação não apenas defende interesses corporativos, mas também atua na defesa das funções institucionais do MPT, promovendo ações voltadas à proteção dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores, previstos nos arts. 6º a 11 da Constituição da República.
Em sua exposição, dividida em quatro pontos principais, ele alertou para as complexidades do tema e a necessidade de uma abordagem cautelosa.
Levantamento do setor e modelos de funcionamento
O primeiro ponto abordado foi um estudo realizado pela Universidade Federal do Paraná, em 2021, que identificou mais de 1.500 empresas atuando em diferentes setores por meio de plataformas digitais. Apesar de o setor de transporte ser o mais representativo, outras áreas como saúde, educação e serviços digitais também utilizam esse modelo. Há ainda empresas que se valem desse mecanismo tecnológico para a contratação de pessoas.
O procurador destacou, pela experiência do Ministério Público do Trabalho (MPT), dois modelos distintos de funcionamento: o "marketplace", onde as plataformas apenas conectam prestadores de serviços aos clientes sem interferir na relação contratual e o de empresas que organizam e controlam diretamente a execução dos serviços, como é o caso da empresa Uber, a recorrente, e outras do setor de transporte, de passageiros ou de mercadorias.
“Essas empresas não apenas intermedeiam, mas fixam preços, modos de execução, regras e categorias de serviços, o que as aproxima mais de uma relação em que está presente a subordinação do trabalhador", explicou. Ele mencionou que, juridicamente, essas plataformas atuam como verdadeiras empresas transportadoras, uma vez que detêm autorizações administrativas para operar com o transporte de pessoas, além de figurarem como proponentes de contratos de transporte em seus aplicativos, na interface com os clientes ou usuários.
O impacto de uma decisão genérica
Outro ponto destacado foi a preocupação com os possíveis efeitos de uma decisão ampla, geral e abstrata, definindo categoricamente a relação jurídica existente entre empresas e trabalhadores, que poderia igualar modelos de funcionamentos distintos das plataformas, além de atingir setores que não estão diretamente relacionados ao caso em questão. Para o procurador, uma decisão mais específica, limitada ao caso concreto, seria mais apropriada.
Presunção de vínculo empregatício e dinâmica probatória
O terceiro ponto discutiu a possibilidade de a decisão ser ampla, geral e abstrata, mas sem definir a natureza jurídica da relação entre as empresas e os trabalhadores, mesmo envolvendo modelos diferentes de funcionamento das plataformas e setores distintos de atividade.
Nesse contexto, entendeu ser possível proferir uma decisão no sentido de se estabelecer uma presunção relativa de vínculo empregatício, em consonância com o art. 7º da Constituição Federal e com o direito comparado, mais precisamente a Diretiva nº 2024/2831 da União Europeia.
Dessa forma, as empresas poderiam apresentar provas que apontassem para o não reconhecimento do vínculo de emprego. Como são as empresas que detêm os dados e informações dos trabalhadores e da prestação dos serviços, são elas que possuem melhores condições de produzir a prova, cabendo-lhes, portanto, o ônus probatório, em consonância com o princípio da carga dinâmica da prova, previsto em nosso ordenamento jurídico, tanto no CPC, quanto na CLT.
Flexibilidade para mudanças futuras
Por fim, o representante da ANPT alertou que uma decisão definitiva pode desconsiderar as mudanças constantes no funcionamento das plataformas digitais, o que poderia fazer com que plataformas que funcionem no modelo “marketplace” modificassem seu modelo, sem que isso implicasse mudança na relação jurídica com os trabalhadores, por conta de uma decisão que porventura definisse categoricamente a relação jurídica como de trabalho autônomo. Ou seja, haveria um engessamento da relação jurídica, que, independentemente do modo de funcionamento da plataforma, sempre seria a mesma, imantada pela decisão acaso proferida definindo categoricamente a relação.
Ele enfatizou que a análise sobre a existência ou não de vínculo empregatício deve ser realizada pela Justiça do Trabalho, conforme previsto na Constituição Federal. “Uma decisão agora pode engessar de modo que uma empresa que hoje é modelo marketplace passe a ser um outro modelo sob o manto de uma decisão que, porventura, considere essa como uma prestação autônoma de serviços”, disse.
O debate no STF reflete a importância de se equilibrar a proteção dos direitos dos trabalhadores com a necessidade de regulamentar um setor em constante evolução. As discussões, que envolvem juristas, especialistas e representantes do setor, são essenciais para garantir segurança jurídica e condições dignas de trabalho.
Vale lembrar que durante dois dias, mais de 50 expositores, incluindo especialistas, pesquisadores e representantes de entidades da sociedade civil, apresentaram informações técnicas e diferentes perspectivas sobre o tema da audiência pública. As discussões abordaram a precarização do trabalho via plataformas digitais, com destaque para práticas de controle algorítmico, dependência dos motoristas em relação às plataformas e os impactos dessas tecnologias nas relações de trabalho.
Ao final da audiência, o ministro Fachin enfatizou a importância do pluralismo, da escuta atenta e da transparência no julgamento do Tema 1291. Disse ainda não haver dúvida de que a audiência pública amplia a participação da sociedade no STF, tornando a decisão da Corte mais legítima. “O conjunto de dados e evidências, bem como as perguntas e as respostas que foram apresentados, vão trazer muitos subsídios para a nossa decisão final”, afirmou.
A presidenta da ANPT, Adriana Augusta de Moura Souza, acompanhou a audiência pública, ao lado de outros membros do Ministério Público do Trabalho (MPT),
como o procurador do Trabalho Renan Kalil, que participou representando o MPT, e o procurador do Trabalho Cassio Casagrande, que falou em nome próprio, como pesquisador e especialista.
Participantes do 2º dia da audiência pública e a diretora de comunicação da ANPT, Helena Fernandes Barroso Marques