Por Ana Lucia Stumpf González* e Cecília Amália Cunha Santos**
O dia 20 de julho de 2020 marca uma década de existência do Estatuto da Igualdade Racial. A lei que tem por objetivo garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica chegou com 122 anos de atraso, já que a abolição da escravidão, em 1888, não contemplou nenhuma medida de reparação. A abolição trazia liberdade, mas não garantia justiça, inclusão social ou qualquer ação de reparação histórica pelos anos de escravização.
O Brasil ainda reluta em reconhecer que sua conformação social está baseada no racismo estrutural. O mito da democracia racial, que fala de um país idílico onde três raças se miscigenaram em harmonia, legando cada qual uma contribuição cultural que deu origem a instituições cultuadas, a exemplo da música brasileira, do carnaval e da culinária não passa mesmo de um mito.
No país onde ninguém é racista, “muito pelo contrário”, o que se vê nas estatísticas é a evidente manutenção de um sistema opressor: a população negra é a principal vítima de assassinatos, tem menos acesso a empregos bem pagos e suporta uma brecha salarial gigantesca entre homens brancos e mulheres negras (44,4%, segundo o IBGE). A política de encarceramento também atinge desproporcionalmente a população negra. Segundo o Infopen (sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro), em 2018, 61,7% dos presos eram pretos e pardos. Entre as mulheres, esse percentual sobre para 68%.
O Estatuto da Igualdade Racial foi concebido para fortalecer políticas públicas com vistas a corrigir essas desigualdades e possui diversos instrumentos para garantir essa finalidade. Entre esses instrumentos, estava a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), com objetivo de organizar e articular as iniciativas voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes. Essas políticas seriam desenvolvidas pelo poder público federal, mas com possibilidade de adesão pelos estados e municípios, o que permite realizar um processo de capilarização das políticas de promoção de igualdade racial. A atuação federativa integrada tinha por base a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), igualmente criada pelo Estatuto.
Após a promulgação do Estatuto, o Governo Federal iniciou a implementação da PNPIR, com a criação da SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2003. A SEPPIR, inicialmente vinculada à Presidência da República, contava com o apoio administrativo do Ministério da Justiça. A SEPPIR tinha como missão promover o diálogo permanente dentro do Governo com os movimentos sociais negros civis, e com todas as esferas da administração pública, e, além disso, se propunha a promover políticas públicas voltadas à promoção da igualdade racial, que visassem o enfrentamento ao racismo e a criação de mecanismos que assegurassem o acesso da população negra à cidadania e direitos sociais, articulando os Ministérios do executivo federal e os demais órgãos federais, Estaduais, Distritais e Municipais, no intuito de dar concretude à natureza transversal e intersetorial de suas ações.
Nesse contexto, várias ações afirmativas foram criadas pelo SEPPIR como forma de realizar o seu escopo. A relevância da SEPPIR era de tal monta na luta por igualdade racial, que, citando apenas a área de educação, segundo dados da publicação – SEPPIR, Promovendo Igualdade Racial, temos que a SEPPIR atuou na implementação da Lei 10.639/03 (que prevê o ensino da história e cultura africanas em todos os níveis de ensino), no desenvolvimento do Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento, no desenvolvimento do Programa Institucional de Iniciação Científica nas Ações Afirmativas (PIBIC- AF), desenvolvimento do Programa de Extensão Universitária (PROEXT), na criação do Selo Educação para a Igualdade Racial, na implementação do Projeto A Cor da Cultura, nos Cursos Gênero e Diversidade na Escola (GDE) e na Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça. Todavia, na área da Educação, a principal ação afirmativa articulada pela SEPPIR foi a aprovação da Lei n°12.711, de 2012 (que instituiu o sistema de cotas no ensino superior).
Outro exemplo de ação afirmativa desse período foi a edição do Decreto 6.040/2007 que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. A Referida política tem por objetivo promover o desenvolvimento sustentável, estabelecendo o reconhecimento, o fortalecimento e a garantia dos territórios tradicionalmente ocupados por esses povos, de modo a assegurar seus direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais.
Outra das grandes conquistas da SEPPIR foi referente aos direitos sociais da mulher negra, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 72/2013 – a PEC das Domésticas, uma grande vitória para a população negra, uma vez que, segundo o Ipea, em pesquisa realizada no ano de 2018, 63% de trabalhadoras domésticas são mulheres negras. Ainda, no contexto de promoção da valorização da mulher negra, a SEPPIR promoveu a criação, por meio da Lei nº 12.987, do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, comemorado no dia 20 de julho. Segundo o dossiê Mulheres Negras – retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil, publicado pelo Ipea, em 2013 as mulheres negras eram as que mais sofriam com a discriminação racial, a violência doméstica e a falta de oportunidades de estudo e crescimento profissional.
Citamos apenas esses exemplos, enfatizando que a atuação da SEPPIR foi muito mais ampla, envolvendo todas as temáticas afetas aos interesses população negra, como intolerância religiosa, acesso a saúde entre outros temas.
Apesar de tantos avanços no tocante à promoção de igualdade racial, a SEPPIR foi extinta pela MP 768/17 junto com outras cinco Secretarias: Políticas para as Mulheres (SPM), Direitos Humanos (SDH), Direitos da Pessoa com Deficiência, Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa e dos Direitos da Criança e do Adolescente, pelo Governo de Michael Temer.
Desde então, houve apenas retrocessos nas políticas de igualdade social e de apoio à população negra. Durante nossa pesquisa para este texto, tentamos consultar informações sobre a implementação do Sinapir – sistema que ainda continua vigente, visto que o Estatuto da Igualdade Racial não foi revogado, tampouco o microssistema antirracista previsto na Constituição da República, de 1988 (art. 3ª, inc. IV, art. 5º, inc. XLII, arts. 215, 216 e 241 e art. 68 da ADCT), além das várias normas internacionais que visam combater o racismo a discriminação e a desigualdade racial – mas, infelizmente, a página se encontra fora do ar no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdaderacial/sinapir/resolveuid/c48b470aca6a495a89577bebf6fc36c2). A ausência dos dados decorre do claro desmonte do Sistema de Promoção previsto do Estatuto, ocorrido ao longo dos governos que se seguiram, a partir de 2016.
Ao contrário do que se busca propagar em algumas instâncias da administração federal, ainda temos muito a avançar no combate ao racismo estrutural, como, por exemplo, na questão referente à representatividade, pois o Estatuto, ao prever acesso a direitos fundamentais, como saúde, educação e cultura, moradia e liberdade de culto, pretende ser um instrumento de valorização e visibilidade. Os 55% de brasileiros pretos e pardos ainda não estão proporcionalmente representados em produções audiovisuais e sua presença em programas de televisão, embora tenha crescido nos últimos anos, não alcançou consolidação suficiente para naturalizar a presença dos corpos negros em lugares de destaque e protagonismo.
Se o Estatuto chegou tarde, é preciso compensar esse atraso com a sua imediata aplicação e conhecimento. Enquanto permanecer um ilustre desconhecido entre intelectuais e governantes, de pouco servirá o potencial transformador de seu conteúdo. É preciso estudá-lo e colocá-lo em prática. Nas escolas, nos tribunais, na mídia, nos espaços de debate. O Brasil pode ser, de fato, o país da democracia racial. Para isso, precisa reconhecer seu racismo estruturante e desconstruí-lo.
* Ana Lucia Stumpf González é Procuradora do Trabalho e Vice Coordenadora Nacional da Coordenadoria de Combate à Discriminação e Promoção da Igualdade do Ministério Público do Trabalho (Coordigualdade)
** Cecília Amália Cunha Santos é Procuradora do Trabalho e Representante Regional da Coordigualdade no Tocantins