Por Ângelo Fabiano Farias da Costa
O Senado Federal deve definir, nos próximos dias, o futuro de milhões de trabalhadores brasileiros, estejam eles empregados ou não. O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 38/2017, que traz a chamada Reforma Trabalhista, se aprovado pela Casa Alta e sancionado pelo Presidente da República, modificará drasticamente as relações de trabalho no Estado Brasileiro, destruindo o alicerce protetivo do Direito do Trabalho.
Antes de tudo, impende ressaltar que a então chamada “Minirreforma Trabalhista” foi encaminhada pelo Governo Federal à Câmara dos Deputados, sob o nº 6.787/2016, propondo a alteração de tão-somente 07 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e de alguns dispositivos da Lei nº 6.019/1974, resumindo-se, até então, em propostas de alterações nas regulamentações do trabalho a tempo parcial, da representação dos trabalhadores nas empresas, do trabalho temporário e na instituição da possibilidade de as negociações coletivas feitas pelos sindicatos reduzirem direitos de trabalhadores das respectivas categorias.
Ocorre que, em sua tramitação pela Câmara dos Deputados, o projeto foi inflado e hipertrofiado, passando a ter um potencial devastador para o atual sistema de proteção do trabalhador. O que eram “apenas” 07 artigos viraram quase 100 artigos da CLT, com mudanças profundas na principal lei trabalhista, em matéria de direito individual, direito coletivo e direito processual do trabalho, quase em sua totalidade com o viés de reduzir significativamente as garantias protetivas do trabalhador e beneficiar empregadores sonegadores e descumpridores de direitos trabalhistas.
Diferentemente do que propalam o Governo Federal e parlamentares defensores da Reforma, que afirmam que ele tem como principais objetivos a criação de empregos, a consolidação de direitos e o incremente de segurança jurídica nas relações de trabalho, temos a plena convicção, pela experiência e expertise da atuação dos membros do Ministério Público do Trabalho em todo o território nacional, no combate a irregularidades trabalhistas, de que essa Reforma Trabalhista, na realidade, aumentará os níveis de desemprego, diminuirá a qualidade dos empregos, reduzirá direitos, fomentará o descumprimento da legislação trabalhista e, por fim, aumentará a insegurança jurídica nas relações trabalhistas.
O PLC 38/2017 segue uma lógica extremamente perversa: a) ao invés de combater o descumprimento da legislação trabalhista, dificulta o acesso à justiça pelo trabalhador; b) ao invés de buscar a prevenção de acidentes do trabalho, limita as indenizações por dano extrapatrimonial (moral, estético e existencial) requeridas pelas vítimas ou familiares; e c) em nenhum momento, o projeto garante alguma regra para manutenção dos empregos daqueles que já estão empregados.
A proposta de Reforma Trabalhista, em trâmite no Senado, cria um "cardápio" de contratos precários, que facilitam a redução da proteção social dos trabalhadores brasileiros, sobretudo, dos direitos previstos no artigo 7º da Constituição Federal, e fomentando a mera substituição dos contratos de trabalho a tempo indeterminado (com mais proteção e mais direitos) por contratos fraudulentos, por contratos temporários e por contratos de trabalho em que o empregado pode receber abaixo do salário mínimo mensal.
Cabe lembrar que um dos principais argumentos utilizados por aqueles que defendem sua aprovação é o que, se aprovada, ela criaria inúmeros empregos, reduzindo os atuais índices de desemprego no nosso país, retirando, assim, da informalidade milhões de trabalhadores brasileiros. Nada mais falacioso!
A proposta atual tem potencial de reduzir drasticamente os níveis de emprego formalizados no mercado de trabalho brasileiro. O PLC nº 38/2017 fomenta fortemente a prática de fraudes nas relações de trabalho, com objetivo espúrio de afastar o vínculo de emprego formal, em situações onde estão caracterizados os elementos da relação empregatícia, trazendo como consequência inevitável o esvaziamento e a sonegação de praticamente todos os direitos trabalhistas fundamentais previstos no artigo 7º da Constituição.
E isso acontecerá, sobretudo, a partir do incentivo a fraudes na utilização de falsas pessoas jurídicas e falsos trabalhadores autônomos que, em realidade, seriam empregados e que, por isso, deveriam ter preservados os direitos do art. 7º da Constituição.
As propostas de alteração trazida para o artigo 442-B da CLT, que institui a figura do “trabalhador autônomo exclusivo e contínuo”, prestando serviço a um único tomador do seu trabalho e com habitualidade, e para alteração do artigo 4º-A da Lei nº 6.019/74, que possibilita que trabalhadores criem “pessoas jurídicas individuais” para prestar serviços em todas as atividades das empresas, inclusive na atividade principal, permitirão que empregados, com carteira de trabalho assinada, sejam demitidos e recontratados ou substituídos por falsos trabalhadores autônomos e por falsas pessoas jurídicas, prestando o mesmo serviço, mas sem vários dos direitos garantidos constitucionalmente.
Isso gerará, sem sombra de dúvida, a redução do número de postos formais de trabalho no nosso país, pois o trabalhador autônomo e a o trabalhador "PJ" trabalham por conta própria, sem carteira de trabalho assinada, assumindo os riscos do seu negócio.
E justamente por não possuírem contrato de emprego formalizado, nem esses falsos trabalhadores autônomos nem os " PJ´s" terão os direitos trabalhistas consagrados no artigo 7º da Constituição Federal, dentre os quais destacamos o direito ao salário mínimo, às férias e a seu terço constitucional, ao 13º salário, ao aviso prévio, ao FGTS, ao seguro-desemprego e a horas extras. Enfim, não terão a garantia de receber nenhum direito fundamental.
Com isso, questiona-se: essa proposta de Reforma Trabalhista não retira, de fato, direitos constitucionais trabalhistas? Podemos afirmar, com conhecimento de causa, que nada é mais inverídico, pois, ao possibilitar que, em qualquer atividade, maus empregadores possam dispensar seus empregados e recontratá-los ou substituí-los por “autônomos” e por “pessoas jurídicas”, prestando os mesmos serviços que prestavam anteriormente, esvazia-se por completo direitos constitucionais trabalhistas previstos no artigo 7ª da Carta Magna, bem como os direitos garantidos na Consolidação das Leis do Trabalho. Com dispositivos perversos como esses, certamente não serão criados novos empregos. Ao contrário, serão reduzidos postos formais de trabalho pois ficará muito mais fácil e barato para a empresa contratar trabalhadores por esses tipos de contratos.
Não bastasse a previsão desses dispositivos que trarão um desmonte na proteção social do emprego e dos direitos constitucionais a ele interligados, o projeto de Reforma Trabalhista amplia e cria vínculos precários de trabalho, em claro confronto com os comandos constitucionais. Há, no texto, um verdadeiro estímulo à substituição dos contratos por prazo indeterminado, que têm garantias mínimas legais e constitucionais, por vínculos de empregos sem qualidade e com direitos reduzidos, como a terceirização ilimitada, inclusive na atividade principal das empresas, e a criação do trabalho intermitente.
O alargamento das possibilidades de terceirização para toda e qualquer atividade empresarial afronta diversos direitos e princípios constitucionais trabalhistas, pois, ao tornar a relação de trabalho trilateral, desnatura, por completo, a essência constitucional do contrato de trabalho, permitindo que haja empresas, sem um único empregado, que se utilizarão, por completo, de trabalhadores externos, com os objetivos de baratear o custo da mão-de-obra e eximir a empresa real beneficiária dos serviços da responsabilidade direta pelo cumprimento de obrigações trabalhistas e previdenciárias.
Ao permitir a terceirização ilimitada, o PLC 38/2017 não teve qualquer cautela em trazer, pelo menos, garantias para os trabalhadores terceirizados, sobretudo de isonomia de direitos com o empregado da empresa tomadora de serviço, oficializando o tratamento discriminatório entre empregados diretos e terceirizados. Nem a responsabilidade solidária é garantida a este trabalhador que, se sofrer calote, o que é muito normal dentre empresas terceirizadas, terá que acionar na Justiça do Trabalho primeiro sua empresa formalmente empregadora para só depois poder atingir o patrimônio da empresa tomadora dos seus serviços, o que, muitas vezes, demora anos.
Perniciosa e inconstitucional, outrossim, é a criação da figura do trabalhador intermitente. Nessa modalidade de trabalho, o contratado não tem qualquer garantia de remuneração mínima, não sabendo se trabalhará algo, nem muito mesmo se no final do mês terá qualquer remuneração. Aqui, o empregador pode, em qualquer atividade e sem qualquer limite, pedir que o empregado trabalhe, por exemplo, uma, duas, três ou quatro horas, um ou dois dias na semana, fazendo com que o trabalhador tenha garantido, tão-somente, o valor do salário-mínimo/hora que, certamente, pode, no final do mês, ser bem abaixo do salário-mínimo mensal garantido por lei.
Essa previsão viola frontalmente a Constituição Federal, pois o salário-mínimo deve ser capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, o que, notadamente, não resta garantido com essa previsão do trabalho intermitente que permitirá, por exemplo, que trabalhadores não recebam nada mensalmente, pois não há qualquer obrigação em se chamar o empregado para trabalhar, mesmo com o vínculo formalizado, ou recebam duzentos, trezentos, quatrocentos reais, montante bem abaixo do salário-mínimo mensal brasileiro e que não será suficiente para prover seu sustento. Dessa forma, esse trabalhador não poderá assumir compromissos financeiros mínimos, pois não terá a certeza de quanto auferirá de rendimento ao final do mês.
Além disso, não há, no PLC 38, qualquer dispositivo que garanta a manutenção dos atuais níveis de emprego ou limites para se utilizar mão desta contratação, de modo que nada impede que, após aprovada e sancionada essa Reforma Trabalhista, trabalhadores como garçons, cozinheiros, vendedores, por exemplo, sejam demitidos do contrato de trabalho a prazo indeterminado para serem recontratados como trabalhadores intermitentes, sem quaisquer garantias de renda e com grande possibilidade de receber menos do que o salário-mínimo mensal, com a piora drástica de sua condição de vida.
Há de se atentar, também, para outras situações maléficas que são trazidas no projeto. Ao contrário do que os defensores alegam, vários direitos trabalhistas estão sendo retirados da CLT, a exemplo das horas de deslocamento para locais de difícil acesso, o que atinge diretamente trabalhadores rurais e aqueles que laboram em canteiros de obras distantes dos centros urbanos, a natureza remuneratória do intervalo de descanso não concedido, que impacta nas verbas salariais do empregado, e o descanso de 15 minutos para as mulheres em caso de prorrogação de jornada. Grave demais é também a previsão da possibilidade de a gestante ou lactante trabalhar em locais insalubres, situação que pode trazer sérios riscos para a mulher e especialmente para seu filho.
Ademais, a proposta de Reforma Trabalhista, ao instituir a prevalência da autonomia da vontade individual e coletiva, afastando, em alto grau, a proteção do hipossuficiente, permite que trabalhadores ou sindicatos possam renunciar a direitos sem qualquer contrapartida compensatória. Com isso, o trabalhador poderá abrir mão da sua garantia de ter observados os limites constitucionais na sua jornada de trabalho, com impactos negativos em sua saúde, a partir do estabelecimento da contestada jornada 12 x 36 para quaisquer tipos de atividade e de quaisquer formas de compensação, e, por conseguinte, em sua remuneração, pois passará a não receber horas extras, nem o seu consequente adicional de, no mínimo, 50% do valor da hora normal.
Gravosa ainda é a instituição do chamado negociado sobre o legislado para reduzir direitos. Ou seja, com a aprovação do PLC 38/2017, os sindicatos profissionais poderão, nas negociações coletivas, renunciar a direitos dos trabalhadores por eles representados. Exemplos são a redução do intervalo de alimentação para 30 minutos, para qualquer tipo de atividade, inclusive penosa e insalubre, a definição das funções de confiança da empresa, que geram o não pagamento de horas extras em casos de prorrogação de jornada, e o reenquadramento do adicional de insalubridade, permitindo que trabalhadores laborem em ambientes insalubres no grau máximo, mas recebendo tão somente o adicional relativo ao grau mínimo de insalubridade, qual seja, 10%, quando, na realidade, deveriam receber 40%.
Não bastasse a criação de vínculos precários, o esvaziamento e a retirada de direitos trabalhistas e o incentivo à sonegação, a Reforma Trabalhista cria diversos obstáculos para acesso à justiça, tudo no intuito de dificultar ou impedir o acionamento da Justiça do Trabalho pelo trabalhador. São exemplos desses empecilhos a cobrança de honorários periciais e de sucumbência para trabalhadores beneficiários da justiça gratuita, a necessidade de pagamento de custas para reingresso de ação anteriormente arquivada por falta do trabalhador à audiência, a instituição da prescrição intercorrente na Justiça do Trabalho, fazendo com que o trabalhador perca seu direito de ação, a retirada da execução de ofício pelo Juiz do Trabalho e o engessamento do Poder Judiciário Trabalhista com a imposição de limites interpretativos para os seus magistrados e proibição de análise do conteúdo das cláusulas firmadas em convenções e acordos coletivos de trabalho.
Enfim, com um pequeno passeio sobre o teor do PLC 38/2017, pois o projeto é longo e mexe com cerca de 100 artigos da CLT, trazendo, em sua integralidade, a inclusão e alteração de mais de 200 dispositivos do Direito do Trabalho, verificamos que a atual proposta de Reforma Trabalhista, além de ser frontalmente inconstitucional, posto que esvazia vários direitos fundamentais previstos na Carta Magna, certamente não trará mais empregos para o nosso país, nem aumentará a segurança jurídica, tendo, a nosso ver, como principal efeito a precarização das relações de trabalho e o aumento da desigualdade e da concentração de renda, contribuindo para o agravamento da crise política, econômica e, sobretudo, social pela qual nosso querido Brasil passa. Oxalá permita que nossos nobres Senadores tenham a sabedoria e a consciência necessárias para rejeitar esse projeto tão gravoso para a sociedade brasileira!
* Ângelo Fabiano Farias da Costa é procurador do Trabalho e presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho - ANPT