Titular do MEC pode ter cometido improbidade administrativa e abuso de autoridade ao punir universidades que lhe desagradam
*CÁSSIO CASAGRANDE
Sou professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) há nove anos e nesse período nunca vi gente pelada circulando pelos nossos campi, no Ingá ou no Gragoatá. Também nunca testemunhei acampamento de sem-terra dentro dos nossos muros. Ademais, em nosso agradável ambiente acadêmico, não vejo professores e alunos fazendo “balbúrdia”. Docentes vão à universidade para ensinar e discentes para estudar, em harmonia e respeito recíproco.
Lendo a entrevista que o ministro da Educação deu ao Estadão no dia 30 de abril passado, descobrimos que o MEC adotou neste semestre requisitos nada republicanos para distribuir recursos públicos às universidades federais. Segundo entrevista concedida àquele jornal, Abraham Weintraub disse que as universidades que promovem “balbúrdia”, sofreriam cortes orçamentários. E adiantou que os cortes promovidos nos orçamentos da UFF, UNB e UFBA se deviam a esse “enquadramento”. Instado pela reportagem a esclarecer o que seria a “balbúrdia”, replicou exemplificando: “gente pelada no campus, acampamento de sem-terra”.
Embora não tenha apresentado prova de nenhuma de suas alegações, o ministro Weintraub declaradamente escolheu “a dedo” três universidades cujas atividades, por critérios exclusivamente políticos, julgou serem inconvenientes. E o fez com a finalidade de puni-las e assim “exemplar” às demais instituições federais de ensino sobre as consequências de uma suposta má conduta.
Vejam que Weintraub, ao proceder daquela forma, agiu como o senhor de escravo que supliciava publicamente o fugitivo para atemorizar aos demais cativos; procedeu exatamente como o empresário inescrupuloso que demite o empregado grevista para amedrontar e docilizar os outros trabalhadores.
Fico imaginando o que aconteceria em países europeus democráticos com a França, a Itália ou a Alemanha, que têm grande estima pela autonomia universitária, se um ministro da Educação apenas ousasse prevalecer-se de sua posição política para retaliar, via orçamento, universidades que, a seu obscuro juízo, não lhe são simpáticas. O ministro, obviamente, seria considerado um fora da lei. Ele perderia o cargo e possivelmente responderia a uma ação penal. É o que aqui também pode acontecer com o ministro Abraham Weintraub, pois, em tese, de acordo com nossas leis, ele teria cometido ato de improbidade administrativa e crime de abuso de autoridade, o primeiro ensejador de perda do cargo e o segundo punível com até seis meses de detenção. Já houve requerimento para a Procuradora-Geral da República instaurar o devido inquérito.
A Lei de Improbidade Administrativa (8429/92) estabelece em seu artigo 11: “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”. Há ponderáveis indícios, pois, de que o ministro praticou ato administrativo de forma parcial, sem legalidade e com o fim proibido de punir instituições federais por critério unicamente ideológico e de cercear a liberdade de expressão nas universidades. Além disso, aparentemente, não há regra de competência que autorize o ministro a estabelecer corte não uniforme sobre o orçamento das universidades federais.
Já a Lei 4898/65, que rege os crimes de abuso de autoridade, tipifica como passíveis de responsabilização criminal qualquer atentado praticado por agente do estado contra a liberdade de consciência, a liberdade de associação, ao direito de reunião e aos direitos e garantias legais associados ao exercício profissional. Todos esses direitos restaram teoricamente violados com o ato ministerial que teve o claro intento de impedir seu exercício por professores e alunos das instituições federais de ensino (Lei 4898/65, art. 3º. alíneas d, f, h, j).
A decisão do ministro foi tão estapafúrdia que na noite do mesmo dia 29 o secretário executivo do Ministério fez uma improvisada declaração à imprensa, na tentativa de dourar a pílula, dizendo que os cortes serão estendidos a todas as universidades “no próximo semestre”. Observe-se que o ministro, até agora, não se retratou nem pediu desculpas pelos seus despautérios. E os cortes contra a UFF, UNB e UFBA, feitos por critérios declaradamente retaliatórios, já foram consumados e estão mantidos até agora. O ato de improbidade e o abuso de autoridade, se caracterizados, até o momento não foram desfeitos.
Primeiramente, deveria o ministro indicar, para fundamentar o seu questionável ato administrativo, quais foram os seminários absurdos ou eventos ridículos organizados na UFF, UNB e UFBA. Será que uma “manifestação antifascista” organizada por alunos da Faculdade de Direito da UFF no ano passado se enquadra como “evento ridículo”, a juízo de Abraham Weintraub?
Para mim, ridículo pareceu o comportamento deste ministro, que agiu como se fosse um comissário de regimes ditatoriais perseguindo o que julga ser o abuso da liberdade intelectual. A sua atitude, além de caracterizar em tese improbidade administrativa e abuso de poder, é condizente com regimes totalitários e obscurantistas. O que Abraham Weintraub se propõe a fazer em nada difere do que faziam os disciplinados ministros sob Mussolini ou Hitler, que naqueles regimes também recebiam carta branca para perseguir “formas degeneradas de expressão” dentro das instituições de ensino.
A declaração do ministro fica igualmente conforme ao figurino daqueles agentes secretos que Metternich enviava às universidades austríacas na primeira metade do século XIX para investigar e denunciar estudantes e professores à polícia por atividades “perigosas”.
Afinal, é compreensível a dificuldade do presidente da República em encontrar um verdadeiro intelectual que aceite dirigir o Ministério da Educação de um governo que não convive bem com a liberdade intelectual.
Para justificar as medidas arbitrárias e supostamente “disciplinadoras” adotadas contra a UFF, UNB e UFBA, Weintraub também declarou em tom admoestador: “Para cantar de galo, tem de ter vida perfeita”. O ministro quer, pois, ditar regras de “vida perfeita” para alunos e professores das instituições federais de ensino. É preciso que ele as declare e não fique em meias palavras. Esperemos pela cartilha pseudomoralista dos comissários do governo, para saber o que podemos ou não fazer dentro das universidades, como condição de acesso ao orçamento.
Além das barbaridades acima referidas, o ministro da Educação alega, dentre outras coisas, que as Universidades Federais vitimadas por sua expedição punitiva tiveram orçamento cortado porque “têm baixo desempenho”. Ocorre que, como percebido facilmente pelos jornais Folha e Estadão, as três instituições federais alvos da fúria persecutória ministerial estão entre as melhores e mais produtivas do país, em ascensão em rankings nacionais e internacionais que analisam medidores de produtividade acadêmica. Onde estão os dados, então, que basearam a estapafúrdia decisão? Aguardemos a resposta, que já tarda.
Até agora, tudo que o chefe da pasta da Educação justificou quanto ao suposto mau desempenho, foi isso: “A lição de casa precisa estar feita: publicação científica, avaliações em dia, estar bem no ranking”, como se as três universidades citadas estivessem em falta quanto a esses tópicos. Essa alegação, desprovida de dados, não passa de mero chute, que na boca de um graduado homem público atende também pelo nome de demagogia.
Diante da louvável preocupação do ministro Abraham Weintraub com o nível quantitativo e qualitativo da produção nas universidades públicas, resolvi pesquisar a produtividade acadêmica do próprio professor Abraham Weintraub, que tem matrícula na UNIFESP, a Universidade Federal do Estado de São Paulo, na qual ele ingressou em 2014. Basta, para tanto, consultar o seu currículo lattes, aberto ao público como o de qualquer docente de universidade pública de nosso país. Vejamos, pois, se o próprio Weintraub, como professor, estava fazendo sua “lição de casa”.
Minha primeira surpresa é perceber que a última atualização no lattes do professor Weintraub foi feita em fevereiro de 2017 (ele somente assumiu o Ministério em abril de 2019). A própria CAPES cobra dos professores que mantenham seus currículos atualizados ao final de cada período letivo, justamente para fins de medir a produtividade dos cursos em que ministram aulas.
Portanto, o ministro estava em falta com sua obrigação funcional desde fins de 2017. Atualizar o lattes (mantido em site oficial do Ministério da Ciência e Tecnologia) de fato é importante, pois é assim que a CAPES avalia quantos artigos ou livros foram escritos, quais orientações de TCC, mestrado ou doutorado foram feitas, em quais bancas os professores participaram, eventos organizados por eles e suas participações em congresso científicos, entre outros. Todo fim de ano o coordenador do programa de mestrado em que dou aulas me liga para gentilmente lembrar de prazos fatais para a atualização do lattes (obrigação que eu e meus colegas do Direito-UFF sempre cumprimos diligentemente e que nos consome bom tempo em época de correção de prova e análise de trabalhos).
Mas, como visto, o professor Weintraub sequer se deu ao trabalho de cumprir o que é necessário ao próprio Ministério da Educação a fim de aferir a produtividade dos docentes nas instituições federais de ensino. Não quero pressupor que a falta de atualização no lattes de professor/ministro Weintraub se deva a incúria ou desleixo, por isso só posso concluir que o ministro não o alimentou nos últimos dois anos por falta do que inserir nele.
É o que tudo indica, inclusive pelo que consta lá até 2017.
Em cinco anos de atividades acadêmicas na UNIFESP, o professor escreveu três artigos e orientou um TCC! Isso mesmo, leitor, um único e raro TCC de graduação em nove semestres letivos! E não participou de nenhuma banca, de graduação, mestrado ou doutorado… Além disto, dos três artigos que ele redigiu neste interregno (dois em coautoria com a esposa e um em coautoria com o irmão), um deles é a versão em inglês de outro publicado em português. Ou seja, na verdade, o professor que se transmutou em ministro publicou apenas dois trabalhos (um de oito páginas e outro de onze), nenhum de autoria exclusiva, e ainda os contou como se fossem três, em conduta ética bastante questionável academicamente, pois a prática é rejeitada por ser conhecida como “autoplágio” (ver a propósito reportagem da Folha de São Paulo).
Mas há mais. A versão em inglês do artigo do ministro (que escreveu com sua esposa), segundo o seu lattes, teria sido publicado na Revista Chilena de Derecho de Trabajo e de La Seguridad Social, vol. 07, pg. 107-114, do segundo semestre de 2016. Ocorre que esse artigo em inglês não aparece mais nesta edição online da revista chilena (editada pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile), e as respectivas páginas foram puladas, provavelmente porque o Conselho Editorial constatou o autoplágio e suprimiu o trabalho. Mas a publicação continua no lattes do ministro.
A versão em português deste artigo que teria sido “autoplagiado” foi publicada originalmente em novembro de 2016 na Revista Brasileira de Previdência, editada pela UNIFESP, e que tem como editor adjunto e membro do conselho editorial … o irmão de Abraham Weintraub, Arthur Weintraub, o mesmo que assina com ele artigo publicado em outra revista, o que, vamos e venhamos, é muito questionável do ponto de vista da ética científica.
Em resumo, a produtividade do ministro Weintraub como professor, além de artificialmente inflada, é inequivocamente baixa, raquítica, sob qualquer padrão de avaliação. E muitíssimo questionável sob padrões éticos. Fosse empregado em uma instituição privada de ensino (admitindo-se que alguma o contratasse com seu currículo anêmico), ele provavelmente já teria sido dispensado por insuficiência de desempenho.
Pois, como ele mesmo diz, para cantar de galo tem de ter vida perfeita…
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A UFF (úfe e não u-efe-efe) é a maior do país em número de estudantes. Estão matriculados em nossa universidade 43 mil alunos, em 130 cursos de graduação. Além disto, há cerca de oito mil alunos na pós-graduação. O corpo docente conta com 3.300 professores, sendo que 85% deles têm doutorado, um dos maiores índices do país nesse quesito.
Nunca senti tanto orgulho em integrar o quadro docente da UFF como nesta última semana. Se por algum motivo nossa universidade está incomodando políticos demagogos e autoritários como o ministro Abraham Weintraub, é porque ela está no caminho certo.
*CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense - UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.