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AS MASMORRAS E A TERCEIRIZAÇÃO

Um grave problema brasileiro volta a ocupar as manchetes com as cenas de barbárie no presídio do Amazonas. O amontoado humano submetido a condições aviltantes, a pretexto de cumprimento de pena ou de meras prisões provisórias, viveu cenas incompatíveis com uma sociedade que se pretende mostrar ao mundo como civilizada.

Nota ainda mais trágica nesse quadro em que seres humanos são tratados como escória social, o Estado do Amazonas admite que 56% dos presos aguardam julgamento. Ou seja, vivem naquelas condições brasileiros que sequer foram condenados.

Ainda assim, o governador do estado não hesitou em dizer que entre os 56 mortos "não tinha nenhum santo".  Parece conhecer o assunto. Os santos, quem sabe, estão do lado de fora. Talvez estejam administrando ou gerindo contratos públicos.

Algumas manifestações comparam nosso sistema prisional a estabelecimentos de segregação da idade média: as masmorras.

As fábulas infantis popularizaram a ideia de masmorras. Lembro de um antigo amigo que pronunciava a expressão carregando os “erres”. Ficava ainda mais tenebroso imaginar o ambiente de reclusão situado nos subterrâneos de castelos. Sempre remetendo à ideia de cômodos escuros e lúgubres, em que padeciam os malfeitores ou inimigos da corte.

Nos filmes que reproduzem o cenário do período medieval os espaços de detenção são sempre escuros e sombrios. Não lembro de ter visto, nas telas, masmorra pior do que algumas das celas do nosso sistema carcerário.

É oportuno lembrar que no Brasil, formalmente, as masmorras não são aceitas nem na legislação penal militar, que admite a pena de morte (em situação de guerra). De forma expressa, em respeito à integridade do preso, o Código Penal Militar estabelece que a prisão deve se dar em local limpo e arejado, onde o detento possa repousar durante a noite, sendo proibido o seu recolhimento a masmorra, solitária ou cela onde não penetre a luz do dia (art. 240).

Talvez os nossos cárceres pudessem ser comparados a pocilgas: local de criação de suínos. Na parábola do Filho Pródigo (Lucas 15:16) o texto bíblico relata o desejo do filho, arrependido dos flagelos de uma vida miserável, de ser aceito de volta ainda que tivesse que se submeter à mais humilhante condição dentre os animais da propriedade de seu pai. Admitia o desejo de “encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam”.

Mas isso também não parece adequado. Essa não é uma imagem que possa ser utilizada como comparação nos dias de hoje. A moderna suinocultura apresenta sofisticados mecanismos de controle da nutrição e do manejo dos animais. As instalações são planejadas e equipadas com a preocupação de propiciar condições ambientais adequadas. O controle higiênico e sanitário é rigoroso. Nada parecido com o que está sendo mostrado nas entranhas do nosso sistema prisional.

À medida que as matérias investigativas se aprofundam, começam a vir à tona dados de investigações em curso, do Ministério Público, que indicam outro problema. O Estado do Amazonas terceirizou a administração dos presídios. Serviços de gestão, operação e manutenção foram repassados a empresas. Mais do que isso, algumas dessas empresas inclusive teriam doado dinheiro à campanha eleitoral do Governador que parece entender de santos. E prosseguem as denúncias. O custo mensal dos “serviços” contratados chegaria ao despropositado valor de R$ 5 mil mensais para cada preso. E a empresa também atuaria prestando os mesmos “serviços” em outros estados.

A denúncia guarda semelhança com o que parece ser uma suspeita troca de favores entre agentes públicos e gestores de negócios privados, a confirmar, divulgada em meados de 2016. O ex-senador do DF (cassado) Luiz Estevão teve gravadas conversas com uma parlamentar em que cita deputados da Câmara Legislativa, ligados a empresas que prestam serviços terceirizados ao Governo de Brasília - contratos milionários. O grupo é chamado de “Bancada da Fatura”.

Os indícios de promiscuidade nessas relações não são novos. Ainda assim, impressiona que a ganância e a falta de escrúpulos nos “negócios” tenham chegado ao ponto de comprometer o funcionamento de unidades prisionais.

O triste capítulo dessa história macabra – que está longe de ser um acidente - dá à sociedade a oportunidade de conhecer, de forma trágica, um pouco dos interesses que estão por trás da terceirização. Não se trata de modernidade e muito menos de santidades. Trata-se de precarização, de ganância e de desprezo pela vida humana. O ser humano utilizado como meio para a irresponsável obtenção de vantagens econômicas.

LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho.

 

 

Autor(es)
LEOMAR DARONCHO

LEOMAR DARONCHO

PRT 10ª/DF

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