André Luís Spies*
Novas tecnologias têm sido assunto onipresente no debate acadêmico e na mídia. Não é para menos, pois as transformações do modo de vida, em tempos de capitalismo “informacional”, assemelham-se àquelas implementadas com a máquina a vapor ou a eletricidade. Os apetrechos que surgem a cada momento seduzem consumidores e se tornam objeto de desejo. Programação é a profissão do futuro, se diz aos jovens. E todos podem ter seus minutos de fama na internet, com lugares de fala de um Nobel – como cravou, criticamente, Umberto Eco.
No que alude às ciências sociais, há efervescência. Na era da gig economy e da smart factory, conceitos como people analytics, EPM (eletronic performance monitoring), knowledge worker ou jobless society precisam ser assimilados pelos que se dedicam ao Direito do Trabalho (e da ocupação), multiplicando-se as discussões do porvir.
A despeito desse mundo novo que se descortina, destacando-se o ubíquo celular, a disponibilizar, na palma das mãos, um surpreendente universo virtual e paralelo, é preciso cuidado para que certa perplexidade que nos acomete diante de tanta informação não comprometa a visão holística do observador, prejudicando sua função principal, que no dizer de Bobbio, é a de prestar a ajuda necessária (da qual só a cultura é capaz).
Presenciamos uma quadra fecunda para o estabelecimento de mitos, como aquele que Mari almeja desconstruir ao diferenciar o fim do fordismo (realidade) do fim do trabalho (sofisma). Na verdade, a expressão desocupação tecnológica restou popular ainda com Keynes, nos anos 30. Ciente de que já se concebeu o trabalho de diferentes formas (na Bíblia, em Aristóteles, na Idade Média ou em Marx), Giovanni arrisca-se a imaginar o que poderia ser o labor do futuro (“niente nasce da niente”), certo que matizado pela centralidade, ambição pouco entendida por uma esquerda que já não se reconheceria e, muito menos, simpática para o neoliberalismo precarizante e ideologias “de apoio” (neonacionalismo, soberania, populismo). Enfim, estaria dada oportunidade de transformação do trabalho em uma atividade “qualitativamente mais avançada”, desiderato todavia distante, a se persistir a constante crítica da ordem social ora em ocaso (que teria não apenas estigmatizado o prestador dependente como alguém obediente e não pensante, desenvolvedor de tarefas repetitivas e parciais, mas também conduzido à desilusão com o welfare).
É nesse contexto de assunção da flexibilidade da economia customizada (I), de ausência das melhores políticas públicas voltadas à igualdade possível (II), de precarização e fragmentação do mercado de trabalho (III) e de eclipse do protagonismo social e político do próprio trabalho subordinado, como antigo eixo estruturante da sociedade capitalista (IV), que a OIT, por ocasião da declaração do seu centenário, buscou defender “a abordagem ao futuro do trabalho centrada no ser humano” e que governos vêm sendo chamados a discutir os impactos das mudanças.
Neste cenário, mesmo no Brasil não poderia ser diferente. O Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, tem sido provocado a se manifestar sobre o trabalho de motoristas de aplicativo e já foram anunciados primeiros vereditos, objeto deste ensaio.
Na recente decisão do RR 10555-54.2019.5.03.0179 (DEJT 05/03/2021), definiu-se pela impossibilidade do reconhecimento do vínculo diante da ausência de subordinação. Reconheceu-se a transcendência jurídica, bem como a notoriedade do novo modelo de gerenciamento, particularidade a não induzir aplicação da súmula que veda revolvimento de fatos e provas na instância extraordinária. No mérito, os argumentos centrais foram a necessária distinção entre novos formatos de trabalho e fraudes típicas, “de modo a não frear o desenvolvimento socioeconômico do país no afã de aplicar regras protetivas do direito laboral a toda e qualquer forma de trabalho”.
Para afastar o contrato clássico, a Corte lançou mão da não habitualidade representada pelo livre arbítrio do motorista, que escolheria dias e constância da labuta, liberado de frequência mínima ou predeterminada. Quando da negativa da subordinação, justificou-se que se poderia desligar o aplicativo a/por qualquer tempo, sem vinculação a metas ou sujeição a sanções. Defendeu-se que a obediência à tabela de valores, códigos de conduta ou instruções de comportamento, assim como a submissão a avaliações seriam episódios dentro da normalidade para “manutenção do aplicativo no mercado concorrencial”, estando correto o Governo ao viabilizar o enquadramento fiscal de motoristas de aplicativo como microempreendedores.
No que concerne à remuneração, além da cota-parte do condutor supostamente ser razoável (entre 75 e 80%) e consonante com o costumeiramente definido para relações de parceria, particularidades como serem seus os ônus da manutenção e os gastos com combustível, multas, impostos ou sinistros sinalariam para o “caráter autônomo da prestação de serviços”.
À derradeira, desconsiderou-se a “subordinação estrutural” porque não caberia ao Judiciário “ampliar conceitos jurídicos”, notadamente quanto a novas formas de trabalho emergentes da concorrência (no segmento das “empresas provedoras de aplicativos”).
No aresto para o AIRR-10575-88.2019.5.03.0003 (publicado em 11/09/2020), também se reconheceu a transcendência da matéria. Invocou-se, entretanto, o precedente nº 126 para a consolidação de premissas de fato inafastáveis: a autonomia, o ônus da atividade, a ausência de subordinação e de sujeição aos poderes diretivos, fiscalizadores ou punitivos. De resto, julgou-se que “a relação de emprego definida pela CLT (1943) tem como padrão a relação clássica de trabalho industrial, comercial e de serviços”. Sustentou-se que “as novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto o legislador não a edita, não pode o julgador aplicar indiscriminadamente o padrão da relação de emprego”. Enquanto isso, ademais, “o enquadramento (...) deve se dar com aquela (lei) prevista no ordenamento jurídico com maior afinidade (...) do transportador autônomo”. Concluiu-se que o trabalho era “pela plataforma tecnológica, e não para ela”.
De mencionar também o RR-1000123-89.2017.5.02.0038 (DEJT 07/02/2020). Ao dar provimento ao recurso da empresa, assentou o TST que não lançava mão da súmula nº 126 porque a transcrição do depoimento do trabalhador na decisão da instância inferior contemplava “elemento fático hábil ao reconhecimento da confissão quanto à autonomia”, admitindo que poderia “ficar offline”, a traduzir “ampla flexibilidade”. Arrematou-se com o veredito de que plasmada estaria ampla “vantagem remuneratória não condizente com o liame de emprego”.
Confira-se o resultado do AIRR-11199-47.2017.5.03.0185 (DEJT 31/01/2019), em que o Tribunal optou pela impossibilidade do reexame de fatos e provas.
Como se percebe, existe no C. Tribunal Superior do Trabalho, por ora, clara tendência de afastamento da vinculação empregatícia dos motoristas de aplicativo, atores por excelência da chamada economia do “compartilhamento” no Brasil, o que não surpreende, se tivermos em mente os estudos da crescente erosão do trabalho subordinado como alicerce ou standard das relações trabalhistas.
Releva salientar que no berço dinamarquês da flexicurity, o perecimento do modelo clássico eventualmente não compromete a utopia da centralização da pessoa humana, dada a existência de amortecedores sociais efetivos.
Em panoramas de governança mais débil, todavia, a linha jurisprudencial que desponta pode prenunciar quadro um tanto distópico, caracterizado por legiões de autônomos sem clientela, acesso a direitos mínimos de remuneração adequada, prestações previdenciárias do Estado ou, mesmo, esperança de um futuro melhor. Nesse caso, não faltarão os que a admoestarão por ter abraçado espécie de “solucionismo” tecnológico, na expressão de Morozov. Afinal, noutras paragens, já se reconheceu que aplicativos podem não ser simplesmente providos, mas explorados por seus idealizadores, na atividade de transporte. Poderia ser acrescentado que algoritmos e smartphones não são garantias de avanço civilizatório.
No horizonte, portanto, o descortinar de complexos e intensos debates. Nosso Judiciário Especializado estará à altura deles, como sempre.
*o autor é associado (desde 1993) e doutorando (La Sapienza, Roma)