Estamos vivendo, em razão da pandemia de Covid-19, o maior colapso da saúde pública, e possivelmente, a maior crise sanitária da história do Brasil, com a média móvel superior a 2.500 mortes ao dia e possibilidade de atingirmos, em curto período de tempo, a triste marca de 500 mil óbitos. Mas o país corre mais um risco: o de entrar para a história como a primeira e única nação que, estando no pico e no epicentro da pandemia, caminha para a supressão da mais importante medida de proteção à saúde dos trabalhadores em frigoríficos assegurada pelo artigo 253 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): as pausas de recuperação térmicas. A medida está prevista no Projeto de Lei de nº 2.363/11, que atualmente tramita na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara Federal.
A organização do trabalho em frigoríficos caracteriza-se pelo trabalho penoso, ritmo intenso, baixas temperaturas, umidade, posturas inadequadas, deslocamento de cargas, riscos de vazamento de amônia, amputações, exposição a agentes biológicos, dentre outras, cumulando inúmeros fatores de risco à saúde humana.
Apesar dos avanços obtidos nos últimos oito anos, os frigoríficos brasileiros ainda figuram como uma das atividades industriais que mais geram acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, em cada ano, como pode se ver no Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho (AEAT) da Previdência Social. Analisando de outra maneira, o cenário permaneceu desfavorável, pois entre as 669 atividades econômicas apresentadas no AEAT, o setor de abate e processamento de suínos, aves e pequenos animais, bem como o de bovinos estão entre as dez atividades que mais causaram acidentes em 2019. Ao somar todas as atividades da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) apresentadas no AEAT, os frigoríficos (CNAEs 1011, 1012 e 1013) ocuparam a terceira posição no ranking de acidentes de trabalho e o segundo lugar no que se refere aos adoecimentos.
Somente em 2019, nos frigoríficos brasileiros, ocorreram, a cada dia, 62 acidentes de trabalho ou doenças ocupacionais, totalizando 22.757 agravos à saúde, em um setor que emprega cerca de 530 mil trabalhadores e é marcado por elevados patamares de subnotificação de doenças ocupacionais.
O perfil dos acidentes e doenças do trabalho no setor de frigoríficos, possíveis de serem verificados nos dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho (ODSST), revela que as lesões mais frequentes no setor e os afastamentos previdenciários com reconhecimento da relação deste com o trabalho estão diretamente ligados à organização e gestão do trabalho.
No período de 2012 a 2018, os afastamentos por acidente de trabalho em frigoríficos mais frequentes foram as doenças osteomusculares e do tecido conjuntivo, seguido das fraturas e dos traumatismos. Os distúrbios osteomusculares representaram 38% de todos os agravos à saúde e as mais prevalentes, conforme os códigos da Classificação Internacional de Doenças (CID), foram: 1) Dorsalgia (M54); 2) Lesões do Ombro (M75); 3) Sinovite e Tenossinovite (M75) e 4) Outros transtornos de discos intervertebrais (M51). Vale destacar ainda uma elevada prevalência, neste setor, de trabalhadores acometidos por transtornos mentais psíquicos (CID F).
Não obstante, verifica-se forte tendência de retirada de parâmetros mínimos de proteção à saúde dos trabalhadores em frigoríficos. Em apenas oito meses, o Ministério Público do Trabalho expediu duas notas técnicas sobre a matéria – a primeira em julho de 2020, em face a Medida Provisória de nº 927 e a segunda em março de 2021, no tocante ao citado PL 2.363/11, que altera o artigo 253 da CLT, afetando negativamente também a Norma Regulamentadora 36 que estabelece parâmetros mínimos de saúde e segurança de trabalhadores em frigoríficos.
O projeto de lei em apreço propõe que somente os empregados de setores com temperaturas inferiores a 4ºC ou que se movimentam de um ambiente para outro em temperaturas com variações superiores a 10ºC teriam direito as pausas térmicas. Isso equivale dizer que a grande maioria dos empregados em frigoríficos não teriam esse direito. Caso aprovado, estaríamos diante do seguinte cenário: mesmo com a manutenção das pausas de recuperação previstas na Norma Regulamentadora 36 (NR 36), empregados, dentre os quais gestantes, poderiam trabalhar até 10 horas diárias, em ambientes com temperaturas de 4,5 a 5 ºC, sem absolutamente nenhum tipo de intervalo de recuperação térmica.
Outros estudos realizados em frigoríficos brasileiros em 2015, 2017 e 2019 evidenciaram que 78%,[ii] 66%[iii] e 59%[iv] dos trabalhadores sentiam frio nas mãos. Constatou-se também, que 73% dos trabalhadores percebiam as suas mãos geladas,[v] mesmo usando em média três luvas sobrepostas e roupas fornecidas pela empresa. Lembrando que em todos os estudos, as temperaturas ambientes das salas refrigeradas estavam entre 10°C e 12°C.
Essa pesquisa também mostrou que os trabalhadores que usavam uma faca estavam mais expostos aos riscos relacionados às baixas temperaturas. Verificou-se que a chance de um trabalhador que usava uma faca sentir frio nas mãos foi três vezes maior do que aquele que não usava essa ferramenta. Além da temperatura ambiente das salas de cortes, outros fatores colaboram para o resfriamento corporal desses trabalhadores, o uso de uma luva de aço e o manuseio de produtos úmidos e frios (≤ 7 ºC) com a mão oposta a faca,[vi] bem como a inadequação do Equipamento de Proteção Individual (EPI) utilizado (luvas furadas/molhadas e roupas desgastadas pelo uso). Destaca-se que o corpo pode perder 25 a 30 vezes mais calor quando em contato com objetos úmidos e frios do que em condições secas ou com roupas secas.[vii]
Em outro estudo com 925 trabalhadores de três frigoríficos foi revelado que a chance de um trabalhador que sentia frio ter algum desconforto osteomuscular era duas vezes maior do que um trabalhador que não sentia frio. Dos 730 trabalhadores que desenvolviam as suas atividades em um ambiente artificialmente frio, 73% sentiam desconforto osteomuscular.[viii]
Em temperaturas ambientais inferiores a 18ºC, o corpo humano perde calor e para manter o equilíbrio corporal faz ajustes para conservar a temperatura nos órgãos vitais, gerando a vasoconstrição periférica (diminuição do fluxo sanguíneo das mãos, pés, braços e pernas), transpiração anormal, e a redução da capacidade de oxigenação celular dos sistemas osteomusculares, com ampliação dos riscos de lesões, notadamente por esforços repetitivos. Em decorrência, o frio é fator de risco aos distúrbios osteomusculares, notadamente lesões por esforços repetitivos e acidentes de trabalho, razão pela qual a Instrução Normativa 98/2003 caracteriza o frio como fator de risco.
O Departamento do Trabalho dos Estados Unidos menciona que isso acontece, pois a exposição ao frio por longos períodos causa o desvio do fluxo sanguíneo das extremidades e da pele exposta para o centro do corpo (tórax e abdômen). Essa alteração fisiológica, faz com que a pele exposta e as extremidades resfriem rapidamente.
Parâmetros ainda mais protetivos estão previstos na Enciclopédia de Saúde e Segurança no Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT), preconizando que para o bom funcionamento das mãos e dos dedos as temperaturas devem estar entre 32°C e 36°C, condição bastante distinta da vivenciada no dia a dia dos trabalhadores de frigoríficos brasileiros.
Expostos ao frio, os trabalhadores também podem apresentar sintomas respiratórios, cardíacos e circulatórios[ix] que podem ser reduzidos com o uso de roupas adequadas, diminuição do tempo de exposição, períodos de aquecimento mais longos (pausas), ingestão de bebidas quentes, informação adequada sobre os riscos existentes e por meio de educação em saúde.
A proposta de mudança dos parâmetros para alterar o artigo 253 contida no projeto de lei que tramita no parlamento brasileiro não resultou de estudos realizados em frigoríficos ou em outros ambientes ocupacionais artificialmente frios. Apenas menciona a necessidade de atualização da referência técnica dos limites de tolerância ao frio, destacando como parâmetro a American Conference of Governmental Industrial Hygienists (ACGIH). Convém esclarecer que o documento produzido por essa instituição se baseia primordialmente em um estudo de revisão,[x] realizado pelo Colégio Americano de Medicina do Esporte, destinado a atletas e treinadores de esportes de inverno, expostos ao frio extremo na América do Norte. Isso pode ser comprovado nas Tabelas apresentadas, pois relacionam temperaturas do ar de 4°C a -50°C com diferentes velocidades do ar (5 a 80 km/h). Evidencia que na maior temperatura (4°C) e melhor condição climática investigada, os indivíduos estão expostos a riscos leves de “morte” da pele por causa do frio (frosbite – quando a temperatura da pele atinge 0°C), ou seja, um efeito agudo e extremo para a realidade dos trabalhadores de um país predominantemente tropical/subtropical como o Brasil. Sendo assim, torna-se incorreto determinar que somente um ambiente laboral com temperatura inferior a 4°C exija pausas de recuperação térmica, haja vista que os resultados dos estudos aqui apresentados demostraram os prejuízos à saúde dos trabalhadores de frigoríficos expostos a ambientes com temperaturas entre 10 ºC e 12ºC.
Os frigoríficos brasileiros seguem rigidamente o Regulamento Técnico da Inspeção Tecnológica e Higiênico-Sanitária fazendo monitoramento diário e constante da temperatura dos produtos e dos ambientes. No entanto, são extremamente raros aqueles que avaliam as temperaturas corporais dos trabalhadores ou entrevistam os empregados sobre a sensação de frio, sendo que as vestimentas atualmente utilizadas em frigoríficos estão longe de promoverem o isolamento térmico adequado para o desempenho das atividades laborais.
Sem sombra de dúvida, caso aprovado o PL, ou mesmo qualquer proposta de revisão da NR-36 com o intuito de reduzir direitos, teremos novamente o crescimento das doenças ocupacionais e acidentes do trabalho. Nesse caso voltaremos a observar “uma legião de lesionados”, terminologia empregada pela Justiça do Trabalho, de primeiro grau, em 2007, ao julgar liminar na Ação Civil Pública de nº 01839-2007-055-12-00-2.
O mesmo risco existe no tocante ao elevado aumento de ações trabalhistas sobre doenças ocupacionais e pagamentos de adicionais de insalubridade.
Após a aprovação da Súmula 438 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que trata do artigo 253 da CLT, em 2012, e da NR 36 em 2013, marcos regulatórios que configuram verdadeiro subsistema de defesa da saúde de trabalhadores em frigoríficos, observou-se melhoria nas condições de trabalho e até mesmo a redução de acidentes de trabalho e adoecimentos ocupacionais.
Muitas empresas têm clareza que a NR 36 constitui um equilíbrio sensível que as beneficia e assegura a saúde de seus empregados, não devendo ser alterada. Isso porque, a NR 36 foi uma construção coletiva e fruto de amplo debate. Infelizmente, outras empresas buscam a redução de gastos, em detrimento da saúde das trabalhadoras e trabalhadores em frigoríficos.
A NR 36, a par de seus avanços, não foi suficiente para assegurar a proteção integral à saúde dos trabalhadores em frigoríficos, levando o Ministério Público do Trabalho a firmar, com as maiores empresas do setor, Termos de Ajustes de Conduta prevendo a redução do ritmo de trabalho em frigoríficos de aves.
Há pontos importantes na NR 36 que não foram acolhidos pelo setor empresarial neste período de pandemia como, por exemplo, redução do tempo de exposição para 7h20min e distanciamento mínimo de 1,5 metros. Tais medidas seriam fundamentais para evitar a transmissão da Covid-19 em frigoríficos,[xi] setor que apresentou diversos surtos durante a pandemia.[xii]
A história do trabalho em frigoríficos demonstrou nitidamente a limitada capacidade de auto regulação do setor quanto à adoção de medidas de proteção à saúde dos trabalhadores, tornando-se fundamental a existência de marcos regulatórios adequados. O documentário Carne e Osso, produzido em 2011 pela Repórter Brasil, com apoio da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, trouxe um relato fiel da situação das condições de trabalho. Diante do PL 2.363/11 e da revisão da NR 36, o seguinte dilema se impõe: seria o Carne Osso um registro histórico ou o cenário futuro das relações de trabalho nos frigoríficos brasileiros?
Por fim, ressaltamos que a supressão das pausas de recuperação térmica nos remete ao ano de 2007, quando o setor apresentava uma elevadíssima prevalência de lesionados em razão da precariedade das condições de trabalho. No referido ano, uma das peculiaridades do setor, era de que importadores do Canadá exigiam nos contratos comerciais mantidos com o Brasil temperaturas inferiores a 10 ºC nas salas de cortes e, os frigoríficos ainda não tinham implementado as pausas do artigo 253 da CLT. A precariedade das condições de trabalho, no longínquo ano, consta da Ação Civil Pública de nº 01839-2007-055-12-00-2 ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho de onde extraímos os seguintes depoimentos de trabalhadoras:
“eles deveriam melhorar a temperatura, que está frio demais. Não é fácil para aguentar na sala de corte…” (fls. 72). “…aqui é frigorífico, mas nós não somos pinguins, pode botar três meias, mais o pé continua congelado e as mãos então ficam dormentes que não sente os dedos” (fls. 279). “…está muito frio, está um inferno…” (fls. 282). “Temos que reduzir o ritmo de trabalho, porque nós não somos robôs, somos seres humanos.” (fls. 395). “…estou abaixo de remédio, já estou dopada de tanto tomar remédio para a dor, me ajudem” (fls. 255). Estamos sendo torturados dentro da empresa…” (fls. 285)
São relatos tristes e que revelam sofrimento nas relações de trabalho. Entretanto, ainda se faz necessário rememorar estas narrativas, em tempos, nos quais há evidentes intenções de retirar direitos dos trabalhadores. Revisitar a história para não repetir erros é um imperativo ético, político, cultural e constitucional em defesa da vida e do trabalho decente!
Sandro Eduardo Sardá é bacharel em Direito pela UFSC, procurador do Trabalho e coordenador do Projeto de Adequação das Condições de Trabalho em Frigoríficos do Ministério Público do Trabalho.
Fernando Mendonça Heck é professor de Geografia do Instituto Federal de São Paulo, Campus Avançado Tupã (SP), pesquisador do Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (Rede CEGeT de Pesquisadores) e coordenador do Centro de Estudos sobre Técnica, Trabalho e Natureza.
Roberto Carlos Ruiz é médico do trabalho, mestre em saúde coletiva (UNICAMP) e doutorando em saúde pública (UFSC).
[i] Tirloni, A S.; Reis, D.C.D.; Dias, N.F.; Moro, A.R.P. The Use of Personal Protective Equipment: Finger Temperatures and Thermal Sensation of Workers’ Exposure to Cold Environment. Int. J. Environ. Res. Public Health. v. 15, p. 2583, 2018.
[ii] Ramos, E.; Reis, D.C.; Tirloni, A.S.; Moro, A.R.P. Thermographic analysis of the hands of poultry slaughterhouse workers exposed to artificially cold environment. Proced. Manuf. 2015, 3, 4252–4259.
[iii] Tirloni, A.S.; Reis, D.C.D.; Ramos, E.; Moro, A.R.P. Thermographic evaluation of the hands of pig slaughterhouse workers exposed to cold temperatures. Int. J. Environ. Res. Public Health 2017, 14, 838.
[iv] Tirloni, A.S.; Reis, D.C.; Borgatto, A.F.; Moro, A.R.P. Association between perception of bodily discomfort and individual and work organisational factors in Brazilian slaughterhouse workers: A cross-sectional study. BMJ Open 2019, 9, e022824
[v] Tirloni, A S.; Reis, D.C.D.; Dias, N.F.; Moro, A.R.P., op.cit.
[vi] Ibidem.
[vii] UFCW. Canada’s Private Sector Union. Helath & Safety. http://www.ufcw.ca/index.php?option=com_content&view=article&id=42&Itemid=123&lang=en#an_2
[viii] Tirloni, A.S.; Reis, D.C.D.; Ramos, E.; Moro, A.R.P., op.cit.
[ix] Chotiphan C, Auttanate N, Maruo SJ, Näyhä S, Jussila K, Rissanen S, Sripaiboonkij P, Ikäheimo TM, Jaakkola JJK, Phanprasit W. Prevalence of cold-related symptoms among Thai chicken meat industry workers: Association with workplace temperature and thermal insulation of clothing. Industrial Health 2020; 58, 460-6.
[x] Castellani, J.W.; Young, A.J.; Ducharme, M.B. et al. Prevention of Cold Injuries during Exercise. Med. Sci Sports Exerc 38:2012- 2019 (2006).
[xi] Sobre a situação dos casos de Covid-19 em frigoríficos ver o artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil e intitulado “Covid-19 na trilha do trabalho precário e vulnerável: o caso dos frigoríficos” de autoria de Fernando Mendonça Heck e Lindberg Nascimento Júnior.
[xii] Boletim Semanal dos Casos de Covid-19 em estabelecimentos abatedouros frigoríficos de carnes de Santa Catarina. Fonte: Sistema de Informação de Saúde do Trabalhador (SISTRA/SC).