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REFORMA TRABALHISTA, DRUMMOND E O RABO DO TATU

Alguns poemas atrapalham essa lógica. Chamam à reflexão.

Em Receita de Ano Novo (dezembro de 1997), Drummond, incomoda dizendo que que se quisermos um ano realmente novo, e não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, temos que merecê-lo.

“Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. ”

Mas o ano de 2016 chega ao final com desafios adicionais. Lá vem a parte incômoda do texto!

O embaralhamento da situação política, turvada pelo que se sabe e agravada pelas suspeitas do que se anuncia, faz com que haja muita pressa na desconstrução do arranjo legislativo que proporcionava, ao menos formalmente, um modelo de sociedade em que se mantinham um conjunto de medidas de proteção social.

O mercado, dizem as manchetes e os arautos da hegemônica, massiva incansável rede de comunicação social, exige sinais. 

Ninguém sabe bem ao certo quem é o mercado. Mas não há dúvidas de que ele está no comando.

Medidas altamente restritivas aos trabalhadores e aos beneficiários, em potencial, da Previdência são tramadas nas madrugadas e nos dias reservados ao preparo do peru natalino e às compras de última hora. São medidas que dificilmente resistiriam à uma discussão social franca e aberta, às claras.

Quem sempre ganhou, na fartura ou na amargura, já não se contenta com isso. Quer a garantia, assegurada na Constituição, de que continuará ganhando e recebendo. Se há dificuldades, ora, que o pato seja pago pelos trabalhadores e pelos que dependem dos serviços públicos!

Em velocidade que indica o constrangimento de quem sabe estar agindo contra aqueles que deveria representar, o Parlamento aprovou a Emenda Constitucional nº 95/2016. Pouco importaram os estudos que indicavam as inconstitucionalidades da Proposta e as suas perversas consequências sobre quem mais precisa do Estado, por duas décadas. Só foram preservados os pagamentos de juros e serviços da dívida. O mercado – lembram! – precisa de sinais.

Além do que já foi destruído, vem aí a desconstrução do que resta de um modelo de proteção trabalhista. Os telejornais e os periódicos, rapidamente, encontram um Pastore sempre pronto a dizer: Por que os trabalhadores não podem decidir o que é melhor para eles? O bom é autonomia negocial. Segundo ele, isso daria segurança jurídica ao trabalhador.

A premissa desse raciocínio é claramente desconectada da realidade. Quem milita na área e conhece a fragilidade da barganha nas negociações coletivas. Ademais, a frase atribuída a Lacordaire cai como uma luva para a fragilidade e o estado de sujeição do trabalhador brasileiro, premido pela sobrevivência e ameaçado pela multidão de desempregados e/ou subempregados: “Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta. ”

O que temos em matéria trabalhista não é o ideal. Isso é certo. Mas é o que foi possível construir em um século de embates. Esse mínimo civilizatório será solapado por Medidas Provisórias e/ou decisões de noites mal dormidas, de afogadilho. É o que se anuncia. O mercado tem pressa!

O final de 2016 e os prenúncios de 2017 não são nada animadores para quem acredita na possibilidade de construir, no Brasil, uma sociedade livre, justa e solidária. Os objetivos traçados para a República Federativa do Brasil, no artigo 3º da Constituição – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais – parecem ter migrado para a condição de enunciados poéticos.

Embora seja reconhecida a nossa abissal desigualdade na distribuição das riquezas, o remédio anunciado para superar uma grave crise, circunstancial, reproduz o conhecido modelo de impor sacrifícios, duradouros, inclusive com reforço na Constituição, aos do andar de baixo, com generosas sinalizações de estímulos aos mercados e aos empreendedores, ou rentistas.   

O nosso incipiente Estado Social está sendo desmontado.

Vamos retomar o compromisso do texto com uma mensagem positiva e esperançosa num novo tempo, que há de vir.

Uma curiosa passagem do passado do Uruguai – pequeno país platino originalmente habitado por um povo identificado como resistente e guerreiro: os charruas - inspira uma mensagem positiva.

José Gervasio Artigas é considerado o herói da independência uruguaia.  Ainda jovem, ingressou no regimento de lanceiros como tenente. Participou ativamente dos conflitos Hispano-Portugueses na Bacia do Rio da Prata, na transição do século XVIII para o século XIX. O movimento marca as lutas de libertação das colônias espanholas. Chegou a ser nomeado tenente-coronel pela junta de Buenos Aires. Em 1811, venceu os espanhóis que se retiraram para Montevidéu. Sob domínio de Portugal, o Brasil ocupou a área em 1811 e a anexou em 1821 – Lei da Incorporação da Cisplatina. Em 1825 iniciou-se nova revolta. Em 1828, pelo tratado de Montevidéu, o Uruguai se tornou uma nação independente.

A rica história da épica luta pela emancipação do Uruguai teve desenlaces pitorescos nos arredores da Colônia de Sacramento. Hoje, a cidade histórica situada às margens do Rio da Prata, guarda em museus uma série de artefatos do período.

Uma das peças mais interessantes é um isqueiro que pertenceu a Artigas.

Num dos lances mais arrojados dos preparativos para os combates, em 1811, Artigas foge de Colônia ajudado por um Padre e acompanhado por um pequeno grupo de soldados. Enquanto é procurado, encontra o abrigo de um rico fazendeiro que fornece moedas de ouro, cavalos e dez negros armados. São reforços que compõem o embrião da resistência, sendo usados, na sequência, contra o governo espanhol.

Na despedida da estância, comovido, Artigas presenteia o fazendeiro com aquele que era o mais precioso bem que trazia consigo. Entregou um belo isqueiro.

O artefato, construído com o toco do rabo seco e curvo do tatu mulita, prata rústica e aço compõe o acervo do Museu Municipal Professor Bautista Rebuffo.

O tesouro material entregue por Artigas, isqueiro, representa o seu maior tesouro imaterial: o inconformismo, a esperança e a disposição para a luta. Sintetiza a metáfora da luta emancipatória, com a carga simbólica de uma centelha de liberdade preservada em momento de grande adversidade.

É o que podemos esperar desse momento de massacre aos direitos sociais. A preservação da esperança e o ânimo para a luta por tempos melhores. Mais justos e menos desiguais.

A história não é linear. O oportunismo que se apega ao retrocesso mantém-se à espreita. Eventualmente triunfa, como agora. 

Mas os sentimentos de justiça e humanidade e o desejo de assegurar uma paz duradoura são historicamente reconhecidos como essenciais para um ambiente de prosperidade. Conforme reconhecido desde o preâmbulo da Constituição da OIT, em 1919, esse ambiente de prosperidade é necessário, inclusive, para manter o atual modelo econômico.

Recordemos, uma vez mais o didático registro da OIT de que “existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais”.

Retomando a poética Receita de Ano Novo, de Drummond, o belíssimo 2017, da cor do arco-íris ou da cor da sua paz, somente virá por merecimento.

“É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.”

O poeta parece querer dizer: desperte!

 

LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho

Autor(es)
LEOMAR DARONCHO

LEOMAR DARONCHO

PRT 10ª/DF

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