A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES E DAS PROCURADORAS DO TRABALHO – ANPT vem manifestar-se CONTRARIAMENTE às alterações que o Projeto de Lei de Conversão (PLV) à Medida Provisória (MP) nº 1045/2021 pretende promover na legislação trabalhista.
A MP foi editada para estabelecer “o Novo Programa Emergencial do Emprego e da Renda” e “dispor sobre medidas complementares para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) no âmbito das relações de trabalho”.
O E. Supremo Tribunal Federal, guardião e intérprete definitivo da Constituição da República, já se pronunciou, nos autos da ADI nº 5.127, no sentido de que, para a validade da edição de medidas provisórias, faz-se necessária a presença, a um só tempo, de urgência e relevância.
O PLV recém-aprovado pela Câmara dos Deputados, ora sob o crivo do Senado Federal, destoa, muito claramente, do entendimento da Corte Constitucional e traz diversas alterações legislativas que refogem ao alcance e aos propósitos originários da MP, sem qualquer relação direta ou indireta com as medidas emergenciais de enfrentamento dos impactos da pandemia, necessárias à manutenção do emprego e da renda dos(as) trabalhadores(as).
Como não se pode ignorar, o rito sumário de aprovação das medidas provisórias não permite a reflexão e o debate necessários à disciplina de determinadas matérias. Não por outra razão, a Constituição da República, na alínea “b” do inciso I do seu art. 62, veda, por exemplo, a edição do citado ato normativo de natureza excepcional para dispor sobre Direito Processual Civil, referência, que, segundo sólidas doutrina e jurisprudência, alcança o Direito Processual do Trabalho.
A ausência de espaço para prévia discussão assume especial gravidade quando se cogita de modificação do arcabouço normativo trabalhista, que, por força de compromisso expressamente assumido pelo Brasil perante a comunidade internacional, pressupõe, segundo o modelo tripartite, sempre e necessariamente, interlocução entre o governo e os(as) destinatários(as) da normatização, empregadores(as) e trabalhadores(as), estes(as) devidamente representados(as) pelas entidades sindicais que os(as) congregam.
Ao propor alterações na legislação processual trabalhista, o PLV viola vedação constitucional explícita. À mingua de urgência e relevância, ignora, ademais, os escopos primitivos da MP e os comandos da Convenção nº 144, da Organização Internacional do Trabalho, o que o faz padecer de manifestas inconstitucionalidade e inconvencionalidade, às quais se somam equívocos substanciais, que, se chancelados, causarão irreparáveis prejuízos aos(às) trabalhadores(as), tudo acentuado pela notória crise sanitária e seus reflexos na economia e no desenvolvimento nacional.
I. DO PROGRAMA PRIMEIRA OPORTUNIDADE E REINSERÇÃO NO EMPREGO – PRIORE
A pretexto de diminuir o número de desempregados(as) no País, a Câmara dos Deputados aprovou a criação do Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego – PRIORE, prevendo modalidade de relação de emprego por prazo determinado, voltada a jovens de 18 a 29 anos e a adultos(as) a partir de 55 anos, subsidiada pelo Estado, com o pagamento antecipado e, portanto, diluído, de verbas como o 13º salário e o terço constitucional das férias. O Programa prevê, ainda, a redução das alíquotas do Regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), assim como do percentual da indenização incidente sobre o saldo da conta vinculada do(a) trabalhador(a).
A notória redução de custos tornará a pactuação extremamente atrativa para as empresas que, nada obstante, observado o percentual de 25% do quadro de pessoal, não ficarão impedidas de dispensar os(as) atuais empregados(as) para, em seguida, outros(as) admitir, valendo-se do PRIORE.
Acresça-se que a divergência entre a duração máxima do contrato – 24 meses – e a do Programa – 36 meses –, em vez de estimular a contratação definitiva do(a) trabalhador(a) originariamente admitido(a) pelo novel Programa, possibilitará sua substituição por outro(a), nas mesmas condições, ou seja, com significativa redução de direitos.
Há contradição entre a premissa de que o Programa se destina “exclusivamente a novos postos de trabalho” e a autorização para sucessivas prorrogações contratuais e para a recontratação de pessoas anteriormente admitidas pelos meios ordinários.
Viola-se frontalmente, pois, o modelo de proteção social estabelecido pela Constituição, que, em seu art. 1º, demonstra apreço tanto pela livre iniciativa quanto pelo valor social do trabalho, pressupostos para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e para a redução das desigualdades sociais e regionais, objetivos fundamentais da República.
Atenta-se, outrossim, contra o princípio da igualdade, ao se permitir, sem a integral garantia de direitos trabalhistas constitucionalmente considerados fundamentais, a admissão de pessoas em situação de vulnerabilidade, como trabalhadores(as) de segunda categoria, circunstância que perpetuará o ciclo de pobreza.
A redução das alíquotas do FGTS e a desconsideração do “Bônus de Inclusão Produtiva”, que compõe a remuneração, como salário de contribuição para fins previdenciários configurarão autêntica renúncia fiscal, sem qualquer contrapartida social direta, não precedida do imprescindível estudo dos impactos nos cofres públicos.
II. DO PROGRAMA NACIONAL DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO SOCIAL VOLUNTÁRIO
O PLV inova ao instituir, além do PRIORE e do REQUIP, o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário, destinado a pessoas entre 18 e 29 anos ou acima de 50 anos, a cargo das administrações municipais, sem vínculo empregatício e os direitos decorrentes.
A nova modalidade de contratação mostra-se contraditória em sua própria denominação, porque se rotula de “voluntário” um trabalho cuja remuneração é assegurada e, assim como os demais Programas insertos no PLV, viola o modelo de proteção social previsto na Constituição, bem como, por suas drásticas consequências sociais, o princípio da vedação ao retrocesso e o da igualdade, este por permitir a admissão de trabalhadores(as) ao lado de colegas em melhores e mais adequadas condições, a despeito da identidade de funções.
O novo Programa, ao permitir, no âmbito dos Municípios, a sistemática contratação de prestadores(as) de serviços, sem a prévia submissão a concurso público ou a qualquer processo seletivo, agride frontalmente os princípios da impessoalidade e da moralidade, em virtude da possibilidade de favorecimentos pessoais e da aptidão para gerar capital eleitoral.
A eficiência na prestação dos serviços poderia ficar comprometida, porque, à falta de concurso ou processo seletivo, não haverá qualquer garantia de que será recrutado(a) quem esteja capacitado(a) para atender às demandas da sociedade.
Ressalte-se, finalmente, que o impropriamente denominado “Serviço Social Voluntário”, a par de caracterizar verdadeiro enriquecimento sem causa da Administração Pública, implicará renúncia fiscal, de dimensão e com efeitos não previamente mensurados.
III. DA PREVISÃO DE ATRIBUIÇÃO EXCLUSIVA AOS(ÀS) AUDITORES(AS) PARA A FISCALIZAÇÃO DAS NORMAS DE PROTEÇÃO AO TRABALHO
O PLV pretende conferir, exclusivamente aos(às) auditores(as) fiscais do trabalho, a atribuição de fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista.
O dispositivo pertinente, por sua generalidade, poderia ser interpretado como óbice a que outros órgãos e instituições com atribuições fiscalizatórias atuem para coibir irregularidades trabalhistas, que, como se sabe, podem ter repercussões civis, criminais e tributárias.
A título de ilustração, autos lavrados pela Receita Federal, nos casos de fraude na constituição de pessoas jurídicas, conhecida por “pejotização”, em virtude da estreita relação com as normas de proteção do trabalho, poderiam ser desconstituídos por sua origem, ou seja, simplesmente porque não se encontram subscritos por auditores(as) fiscais do trabalho.
A igual sorte sujeitar-se-iam a atuação dos órgãos vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, o que é infinitamente mais grave, a do Ministério Público do Trabalho, nada obstante, como ramo do Ministério Público da União, a Instituição esteja, pelo inciso V do art. 8º da Lei Complementar nº 75/93, expressamente autorizada a “realizar inspeções e diligências investigatórias”, “nos procedimentos de sua competência”, como os que visam à erradicação do trabalho infantil e da escravidão.
A atribuição exclusiva que se deseja fixar contrariaria o interesse público, dada a exiguidade do quadro de auditores(as) fiscais do trabalho, bem assim o histórico e notório déficit estrutural a que se expõem no exercício de suas funções. Comprometer-se-ia sobremaneira a capacidade estatal de garantir o pleno cumprimento da legislação trabalhista, essencial à eficácia do sistema de proteção dos direitos sociais.
IV. DA CONCESSÃO DE FORÇA EXECUTIVA EXTRAJUDICIAL AO TERMO DE COMPROMISSO FIRMADO POR AUDITORES(AS) FISCAIS DO TRABALHO
Deve-se atentar, inicialmente, para a diversidade conceitual dos termos de compromisso firmados pelos órgãos do Poder Executivo Federal, inclusive pelos(as) auditores(as) fiscais do trabalho, instrumentos negociais de Direito Administrativo, dos termos de ajustamento de conduta celebrados nos autos dos procedimentos instaurados pelo Ministério Público do Trabalho, instrumentos de tutela coletiva, que retiram autoridade e força executiva de diplomas legais específicos, como o Código de Defesa do Consumidor, cuja alteração demandaria a observância do processo legislativo correlato, diverso do afeto às medidas provisórias, premissa que, obviamente, desaconselha o comprometimento de seu alcance ou de seus propósitos por ato normativo excepcional.
A alteração legislativa proposta atribui ao termo de compromisso, nada obstante a diversidade de requisitos de aperfeiçoamento, igual eficácia jurídica e prevê, por até dois anos, uma espécie de imunidade em favor do compromitente, absolutamente contraindicada, social e juridicamente, sem sequer esclarecer que a suspensão de novas fiscalizações, na vigência do instrumento, referir-se-á apenas às realizadas pelos(as) auditores(as) fiscais do trabalho, circunstância que poderia repercutir no exercício das atribuições, objeto de Lei Complementar, do Ministério Público do Trabalho, cujos(as) membros(as), diversamente dos(as) auditores(as), gozam de independência funcional.
Como é cediço, a atividade legiferante exige cautela e, pois, que se evitem, já no nascedouro de qualquer ato normativo, possíveis futuras interpretações equivocadas e insegurança jurídica.
É fácil presumir que, na vigência de um termo de compromisso que convenha a seus interesses, com a corolária suspensão de novas fiscalizações, empresário(a) algum(a) se sentirá estimulado(a) à celebração de um termo de ajustamento de conduta perante o Ministério Público do Trabalho, ainda que aquele primeiro instrumento não seja apto à integral proteção dos(as) trabalhadores(as), perpetuando-se, assim, o ilícito, os danos e os conflitos.
V. DAS RESTRIÇÕES DO ACESSO À JUSTIÇA
Com o declarado propósito de evitar reclamações trabalhistas temerárias, a partir da questionável presunção de má-fé nas declarações da impossibilidade de suportar as despesas processuais, o PLV restringe o alcance da gratuidade judiciária, já severamente comprometido pela Lei nº 13.467/2017, a “Reforma Trabalhista” anterior à que agora muito claramente se deseja implementar, a despeito da finalidade restrita das medidas provisórias e da circunstância de que todos os supostos benefícios sociais da primeira restaram, como era de se esperar, inalcançados.
O PLV, contrariando sólida jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, limita excessivamente o acesso dos(as) hipossuficientes à Justiça do Trabalho, seja pela exigência de prova documental, seja pela imposição de honorários sucumbenciais mesmo aos(às) beneficiário(as) da gratuidade de justiça, inclusive mediante dedução do valor efetivamente devido, não espontânea e oportunamente quitado, em inaceitável atentado contra o princípio da integralidade do crédito judicial trabalhista e absurda desconsideração da recorrente natureza alimentar.
Com efeito, a hipossuficiência originária, comumente mais do que presumível, até pelo desemprego, não desaparece apenas com o êxito na demanda. Ao revés. Quase sempre é agravada pelo tempo de duração do processo, resultante da resistência oferecida ao trânsito em julgado e à execução dos provimentos jurisdicionais.
A necessidade de obtenção de prova documental poderia submeter o(a) cidadão(ã) a situações capazes de lhe malferir a dignidade, com inadmissível retrocesso à era pré-desburocratização, em que se exigia atestado de pobreza, emitido por autoridades policiais, eliminado pela Lei nº 7.510, de 04 de julho de 1986.
Não se pode admitir tamanha violação ao direito fundamental de provocação da jurisdição estatal, garantido pelos incisos XXXV e LXXIV do art. 5º da Constituição da República, imprescindível à concretização da igualdade jurídica dos sujeitos da relação de trabalho, escopo precípuo da legislação trabalhista.
PELO EXPOSTO, a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES E DAS PROCURADORAS DO TRABALHO – ANPT, convicta de que o Projeto de Lei de Conversão à Medida Provisória nº 1045, aprovado pela Câmara dos Deputados, não observa os limites constitucionalmente impostos à edição de medidas provisórias, bem como de que, à míngua de concomitantes urgência e relevância, excede os propósitos originários do ato normativo de natureza excepcional, inclusive violando o modelo de diálogo tripartite exigível na alteração do arcabouço normativo de proteção do trabalho, pugna por sua rejeição quanto aos pontos acima analisados, reportando-se às demais objeções constantes da Nota Técnica divulgada, ontem (18), pelo Ministério Público do Trabalho e à anterior manifestação contrária à instituição do Regime Especial de Trabalho Incentivado – REQUIP, subscrita em conjunto com a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e a Associação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – AMPDFT[1].
Brasília, 19 de agosto de 2021.
JOSÉ ANTONIO VIEIRA DE FREITAS FILHO/LYDIANE MACHADO E SILVA
Presidente/Vice-Presidenta
[1] https://www.anpt.org.br/imprensa/noticias/3937-nota-publica-conjunta-contraria-a-instituicao-do-regime-especial-de-trabalho-incentivado-requip-pela-medida-provisoria-n-1045-2021