*Por VANESSA MARTINI
A crise econômica é a que mais impacta a sociedade. Governos caem e são eleitos preponderantemente com base na situação da economia. Ela é a razão, para muitos, suficiente para qualquer mudança. Essa é a causa do momento tão frágil que as instituições e conquistas sociais passam. Emergem-se discursos que pregam como saída a alteração do regime político, das políticas voltadas a direitos sociais ou redução de garantias, como se isso fosse a única solução possível. Tudo em nome de uma retomada, em tese, do desenvolvimento econômico.
Nossa Constituição Federal é recente. Esse ano faz trinta anos de sua promulgação. Foi um marco na consolidação do regime democrático no país, após um período conturbado de redução de garantias individuais e de prevalência de regimes não democráticos.
A Constituição cidadã, como foi chamada, foi editada com a participação social massiva, com movimentos nas ruas de manifestações a favor do voto universal e direto, igualdade entre homens e mulheres, reconhecimento dos direitos dos indígenas, fixação da criança como sujeito de direitos, entre outros direitos que hoje podem parecer óbvios ou básicos, mas à época foram fruto de grande luta para serem conquistados.
Muitos avanços foram fixados no texto constitucional. Sob essa perspectiva, parece pouco eficiente pregar retrocesso destas garantias em nome de uma possível retomada de crescimento e superação de crise econômica. Muito se caminhou até aqui para simplesmente acabar com a estrutura conquistada de garantia de direitos.
Além disso, é uma falácia adotar o discurso de que a redução de direitos ou a alteração de regime político garantiria a retomada do crescimento e que essa seria a saída para a crise econômica. Laura Cardoso, em seu livro “A Valsa da Economia: do boom ao caos econômico”, expõe como políticas inclusivas do início do século XXI fomentaram a economia a ponto de repercutir no padrão de consumo das famílias. A partir de uma análise econômica robusta dos períodos históricos dos últimos 30 anos no Brasil, percebe-se que a flexibilização de direitos e garantias nunca foi a solução para crises econômicas.
Nossa Constituição faz 30 anos e em vez de pautarmos os discursos em retrocessos para defender a falácia de que isso provocará crescimento econômico, deveríamos pregar o fortalecimento das instituições democráticas, conquistadas a duras penas para que, aí sim, tenhamos uma superação da crise de forma consolidada e firmada em princípios e garantias de direitos fundamentais internacionalmente consagrados.
Não busquemos o caminho aparentemente mais fácil ou o discurso simplista, mas continuemos firmes nos propósitos da Constituição Cidadã, de forma a fortalecer nosso regime democrático, ainda tão jovem, fomentador de liberdade, igualdade e garantia de direitos fundamentais.
*VANESSA MARTINI é procuradora do Trabalho em Rondonópolis
Estanislau Tallon Bozi
Há trinta anos, grande parte da população parou para assistir à promulgação da nova Constituição Brasileira, denominada, então pelo presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 – Ulysses Guimarães, de Constituição Cidadã, dada a tendência do constitucionalismo daquele momento de elevar a nível constitucional direitos e deveres que poderiam muito bem constar na legislação ordinária, comum, infraconstitucional. Era um tempo de esperanças. O Brasil saía do regime militar e iniciava o processo de redemocratização. Embora com resquícios do período de exceção recém-encerrado – por exemplo, participação de senadores “biônicos”, eleitos indiretamente, fruto do denominado “Pacote de Abril”, do governo de Ernesto Geisel – a Assembleia Constituinte, em cerca de dois anos de amplos e profícuos debates, cumpriu sua missão.
Promulgada, sob a proteção de Deus, a Carta Política elegeu seus valores supremos (liberdade, justiça, segurança, igualdade, entre outros) e seus fundamentos, dos quais se destacam os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Ambos, portanto, no mesmo patamar. O trabalho vem antes, mas deve ser compreendido em sentido amplo, como “atividade humana”, que também possibilita a livre iniciativa.
Ao prever os Direitos e Garantias Fundamentais, o Legislador Constituinte inseriu um capítulo sobre os direitos sociais, nos quais se incluem o trabalho, o lazer e a previdência social. No mesmo capítulo, prescreveu um amplo rol, não exaustivo, de direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, muitos deles já existentes na legislação anterior à Constituição: salário mínimo, férias, décimo terceiro salário, fundo de garantia do tempo de serviço, adicionais de insalubridade e periculosidade, idade mínima para o trabalho, repouso semanal, remunerado, etc. Também inovou, ampliando o prazo de prescrição, criminalizando a retenção dolosa dos salários, protegendo a relação de emprego contra despedidas arbitrárias ou sem justa causa, possibilidade de compensação de horários e redução da jornada, fixação da duração do trabalho em turnos de revezamento, acréscimo de um terço sobre a remuneração nas férias, proporcionalidade do aviso prévio, adicional de penosidade, proteção contra a automação, equiparação entre empregados e trabalhadores avulsos, entre outros. Infelizmente, parte dessas prescrições depende de legislação complementar e não foram implementadas pelo Legislador Constituído.
Das mais de uma centena de emendas constitucionais neste trintênio, poucas atingiram os direitos sociais. Exemplificativamente, o artigo 6.º, que traz o rol dos direitos sociais, foi ampliado em 2000, 2010 e 2015, o que, em tese, reflete um ganho para a sociedade, que adquiriu mais direitos.
O artigo 7.º constitucional, que relaciona os direitos dos trabalhadores, foi objeto de quatro emendas: o salário-família, inicialmente destinado a todos os trabalhadores, foi restrito, em 1998, aos dependentes dos trabalhadores de baixa renda (inciso XII); em 2006, a assistência gratuita aos filhos e dependentes em creches e pré-escolas, iniciada com o nascimento, passou da idade de seis para cinco anos (inciso XXV); o prazo prescricional foi equiparado para todos os trabalhadores, sejam urbanos, sejam rurais, no ano 2000 (inciso XXIX); a idade mínima para ingresso no mundo do trabalho, em 1998, foi ampliada, de quatorze anos para dezesseis anos (inciso XXIII); e, por fim, seu parágrafo único, que conferia alguns direitos aos trabalhadores domésticos, teve significativa ampliação em 2013.
O artigo 8.º não recebeu qualquer alteração nestes trinta anos, mantendo-se a ampla liberdade de associação profissional e sindical, a proibição de interferência estatal no funcionamento das entidades sindicais, a unicidade sindical (proibição de mais de um sindicato representativo da categoria no mesmo local), a base territorial mínima equivalente a um município, a ampla representação sindical na defesa dos interesses categoriais, coletivos ou individuais, judicialmente ou não, e a garantia no emprego do dirigente sindical desde o registro da candidatura até um ano após o fim do mandato.
O artigo 9.º assegura o direito de greve e a competência dos trabalhadores para decisão do exercício desse direito. Aqui, tem-se grande avanço democrático, permitindo a atividade sindical e dos indivíduos na dialética social, transferindo à lei a definição dos serviços e atividades essenciais e do atendimento às necessidades sociais inadiáveis e o estabelecimento das punições no caso de abuso no exercício do direito.
Os artigos 10 e 11 garantiram a representação dos trabalhadores nos órgãos públicos colegiados que tratem de seus interesses e nas empresas.
Obviamente, muitos desses direitos ainda estão por ser concretizados. Assim, algumas propostas de convocação de assembleia constituinte demonstram-se descabidas. Ora, precisamos efetivar o que a sociedade – verdadeiro poder constituinte – elegeu como meta de realização do bem social. Do contrário, perpetuaremos uma cultura de desrespeito à lei e de pensar que tudo se resolve com a edição de novas normas.
A Constituição estabeleceu a ordem social tendo por base o primado do trabalho. Isso quer dizer que o trabalho é de maior importância, está em primeiro lugar, é prioritário.
Para fazer valer os direitos sociais e estabelecer o primado do trabalho, o Constituinte dotou o Ministério Público de feição inédita, desvinculando-o da representação processual e defesa da administração pública e transformando-o em verdadeiro advogado da sociedade e em “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (artigo 127).
Assim, integrando o Ministério Público da União, o Ministério Público do Trabalho nestes trinta anos tem atuado firmemente na defesa social nos temas relacionados ao mundo do trabalho, fazendo-o no combate a qualquer forma de discriminação (etária, racial, religiosa, sexual ou de qualquer outra natureza), à exploração do trabalho de menores, ao trabalho escravo, ao tráfico de pessoas, às irregularidades na administração pública e na terceirização, às fraudes, ao assédio moral e ao assédio sexual, na inserção no mercado de trabalho de pessoas com deficiência, na regularização das relações e condições de trabalho na administração pública e no trabalho portuário e aquaviário, na construção de meio ambiente de trabalho adequado e saudável e nas relações coletivas de trabalho, fomentando a liberdade sindical e o diálogo entre os atores sociais. A atuação volta-se à concretização dos direitos sociais ligados ao trabalho, na busca da pacificação social, pois a Paz é fruto da Justiça. No Estado do Espírito Santo, destaca-se, recentemente, sua atuação na tragédia do Rio Doce e na crise da Segurança Pública.
Que venham outros tantos jubileus da Lei Maior!
*OBS: Artigo publicado originalmente no site Tribuna On-line.
A lei n. 13.467/17, intitulada pelo Governo como reforma trabalhista, pretende introduzir um grande número de mudanças na regulação do trabalho no Brasil. Temas como terceirização, grupo econômico, trabalho intermitente, limites da negociação coletiva, dentre outros, integram um quadro de grandes alterações na CLT. Dentre as várias mudanças, destaca-se o tema contribuição sindical, cujo desconto passa a ser condicionado à prévia e expressa autorização (CLT, arts. 545, 578 e 579).
Dentre outros questionamentos decorrentes da reforma, o mundo do trabalho se pergunta: A contribuição sindical foi extinta?
A discussão sobre a constitucionalidade da contribuição sindical não é de hoje. Sustenta-se violação à liberdade sindical, cujo conteúdo permite concluir pela impossibilidade da imposição de contribuição tão somente por conta do fato de integrar determinada categoria, econômica ou profissional.
A OIT rejeita atribuir ao legislador a instituição de contribuição a ser paga pelos trabalhadores. Em respeito à liberdade sindical, a criação de contribuições deveria decorrer do estatuto das entidades sindicais, bem como da negociação coletiva entre patrões e empregados.
O STF, partindo da unicidade e da extensão da negociação coletiva à toda a categoria, reconhece a constitucionalidade da contribuição sindical, bem atesta sua natureza jurídica de tributo (ADPF 146/684, RE 146.733 e RE 180.745).
Desde a reforma, tem sido frequente o entendimento de que a alteração legislativa que ocorreu em 2017 teria sido responsável pela supressão da compulsoriedade da contribuição sindical. A partir de então, segundo referida tese, essa fonte de custeio se transformaria em facultativa, cabendo aos trabalhadores e aos empregadores livremente decidir se irão ou não proceder ao recolhimento.
Essa ideia do fim da compulsoriedade tem como fundamento a nova redação do artigo 578 da CLT que introduz o requisito autorização prévia e expressa para fins de pagamento da contribuição sindical:
Art. 578. As contribuições devidas aos sindicatos pelos participantes das categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas pelas referidas entidades serão, sob a denominação de contribuição sindical, pagas, recolhidas e aplicadas na forma estabelecida neste Capítulo, desde que prévia e expressamente autorizadas.
Pode-se sustentar que, ao condicionar o pagamento da contribuição sindical à prévia e expressa autorização, o legislador teria eliminado o caráter vinculante da contribuição sindical? Acredita-se que não.
A contribuição sindical, instituída pela CLT originariamente com a denominação “imposto sindical”, abrange trabalhadores e empregadores integrantes de determina categoria, profissional ou econômica. Para tanto, os 32 artigos que integram o capítulo III da CLT, intitulado contribuição sindical, ocupam-se da criação, forma de cálculo, destinação, penalidades, dentre outras questões relacionadas à essa fonte de custeio sindical.
Trata-se, portanto, de contribuição prevista em lei e reconhecida pelo legislador constitucional de 1988 (art. 8º, IV). É importante definir a natureza jurídica dessa contribuição. Ao ser instituída pela lei, bem como tendo abrangência sobre toda a categoria, recai sobre a contribuição sindical a natureza jurídica de tributo, nos moldes preconizados pelo artigo 3º do Código Tributário Nacional:
Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
Sim, desde sua instituição, a contribuição sindical detém o caráter de tributo, pois se trata justamente de prestação pecuniária compulsória desvinculada do conceito de sanção por ato ilícito. Ou seja, seu pagamento decorre tão somente da condição de integrante de determinada categoria econômica ou profissional. Da mesma forma, além de instituída pela CLT, como visto, sua cobrança ocorre mediante o recolhimento de guia específica emitida pela Caixa Econômica Federal, observadas as regras estabelecidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
O valor arrecado deve ser divido entre sindicato, federações, confederações, centrais sindicais e "Conta Especial Emprego e Salário", essa última administrada justamente pelo Ministério do Trabalho e Emprego, pois seus valores integram os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (CLT, art. 589). Daí porque a contribuição sindical, segundo os tributaristas, merece ser denominada “contribuição parafiscal”, pois não se destina exclusivamente aos cofres públicos.
A CLT também define a destinação de tal recurso, destacando-se a obrigação dos sindicatos na prestação de serviços relacionados à assistência jurídica, médica e odontológica, bem como à realização de estudos econômicos (art. 592). Obviamente, por se tratar de tributo, os valores arrecadados estão sujeitos à fiscalização pelo Tribunal de Constas da União, não merecendo guarida o veto presidencial ao artigo 6º da Lei n. 11.648/08.
Bom, mas a essa altura o leitor pode estar se perguntando se a reforma trabalhista não teria acabado com a compulsoriedade da contribuição sindical quando estabeleceu o requisito autorização prévia e expressa para fins de pagamento. Para responder tal questão é necessário superar um questionamento prévio: Lei ordinária pode revogar tributo?
Prezado leitor, não se preocupe. Essa breve análise não tem a pretensão de discutir o sistema de hierarquia das normas que integram o ordenamento jurídico, muito menos tratar temática afeta ao Direito Tributário. Propõe-se uma análise mais singela. Para tanto, ao se questionar os limites da reforma trabalhista, instituída por lei ordinária, ressalva-se apenas a garantia constitucional que atribui à lei complementar a instituição, modificação e extinção de um tributo, inclusive na modalidade “contribuição parafiscal” (CF, arts. 146 e 149).
Ainda assim, o projeto de modernização trabalhista preconizado pelos defensores da reforma trabalhista não corre grandes riscos. Basta apenas ao interprete recorrer à interpretação do novo dispositivo legal conforme a Constituição. Em outras palavras, obviamente a Lei n. 13.467/17 não tem capacidade de extinguir a contribuição sindical. Tal tarefa deve ser incumbência de lei complementar, como visto. Por tanto, a contribuição sindical persiste, tendo o legislador tão somente imposto ao empregador a obrigação de só proceder ao desconto da contribuição quando prévia e expressamente autorizado pelo trabalhador.
A título de comparação, essa questão do desconto pelo empregador gerou certa discussão na Itália. O artigo 26 do Statuto dei diritti dei lavoratori (Lei n. 300/70) permitia o desconto em folha da contribuição devida aos sindicatos. Contudo, após referendo realizado no ano de 1995, o parágrafo que instituía tal obrigação foi revogado, sob o fundamento de que se tratava de um grande ônus ao empregador. Diferentemente, no modelo brasileiro persiste esse encargo sobre o patrão, que deverá ter a cautela de apurar a concordância do trabalhador a respeito (CLT, arts. 545 e 582).
Na hipótese de não ocorrer a autorização prévia e expressa, o empregador estará desonerado de proceder ao desconto, cabendo ao sindicato profissional cobrar o valor devido a título de contribuição sindical por outros meios.
Quanto à contribuição sindical patronal, a opção do empregador em proceder ao recolhimento no mês de janeiro de cada ano merece a mesma interpretação conforme a Constituição (CLT, art. 587). Em outras palavras, mantida a contribuição sindical pela ausência de lei complementar, a obrigação de recolhimento persiste, não obstante a opção da empresa em não recolher no prazo legal. Caberá, portanto, às entidades sindicais patronais recorrem a outras formas de execução do valor devido.
Em tempo, a autorização prévia e expressa pode ocorrer de forma individual ou coletivo, mas isso é tema para outra conversa.