*Por: Santos Carvalho, José Reis
Nessa exposição de ideias, teceremos algumas considerações acerca da nova ordem jurídica aplicável às relações de trabalho no Brasil, a revelar a gravíssima ruptura do paradigma de proteção ao trabalho como fonte de dignidade da pessoa humana, notadamente a partir da alteração legislativa que regulamenta o trabalho temporário e permite a terceirização irrestrita no círculo das pessoas jurídicas de direito privado - Lei 13.429 de 31 de março de 2.017 -, arrematando com a importância da política para consolidação das aspirações democráticas do povo.
No que concerne ao trabalho temporário, sua essência sempre foi a de suprir necessidades da empresa contratante, em situações bem definidas - necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou à acréscimo extraordinário de serviços-, para execução de suas atividades-fins, por curto espaço de tempo. O novo regramento, todavia, impõe enorme prejuízo aos trabalhadores, seja em razão das novas e casuísticas circunstâncias flexibilizatórias introduzidas, seja em razão da abusiva amplificação do prazo permitido para sua utilização.
Concede salvo-conduto à empresa contratante para atender sua demanda complementar de serviços, aí incluída a decorrente de fatores previsíveis de natureza intermitente, periódica ou sazonal, tipos abertos fomentadores de insegurança jurídica.
Agregue-se a esse fator, a genuína subversão do caráter célere dessa modalidade, quando a admite pelo prazo excessivo de cento e oitenta dias, prorrogável por mais noventa dias, autorizando, sem limites, que o trabalhador possa ser “colocado à disposição da mesma empresa” após três meses do término do contrato anterior.
Ou seja, poderá o trabalhador “ser disponibilizado” por nove meses, afastado três meses a cada repetição do ciclo e “redisponibilizado” à mesma empresa-contratante após esse afastamento, moto-contínuo, indefinidamente.
Nessa situação, fácil perceber o prejuízo de todos os trabalhadores envolvidos, bem como a contaminação do ambiente de trabalho diante do clima de insegurança, de medo, dos empregados da tomadora de serviços, que podem, a qualquer tempo, ser substituídos facilmente pelos trabalhadores "disponibilizados" pela empresa contratada de trabalho temporário.
No que diz respeito à contratação dos serviços de empresas prestadoras, a nova lei dispõe que a terceirização está apta a produzir efeitos em se tratando de prestação de serviços determinados e específicos, não impondo qualquer restrição ou vedação, salvo a de que as atividades não podem ser distintas das que foram objeto do contrato.
Vale dizer, se se tratar de atividade, qualquer que seja sua natureza, lícita por óbvio, constante do contrato de prestação de serviços, autorizada está sua execução. Diante do texto legal, portanto, no âmbito privado, não há margem para dúvidas: a terceirização da atividade-fim está autorizada, circunscrita ao círculo das pessoas jurídicas de direito privado (art. 5º, II, da CF/88). Nessa perspectiva, dizer que o ambiente de trabalho tenderá a ser hostil, totalmente contaminado, com empregados (principalmente os com tempo razoável e remunerações maiores) vivenciando genuíno clima de terror com a possibilidade de demissão e substituição por outros com remunerações menores, "fornecidos" pela empresa contratada, é falar o óbvio. Dizer que os acidentes de trabalho, inclusive os fatais, em sua grande maioria, atingem os trabalhadores terceirizados, é fato incontestável, basta verificar os registros atuais. O mesmo se diga quanto à substancial redução da remuneração e benefícios a que fazem jus os terceirizados, aliada à sobrejornada excessiva imposta à esse contingente.
Em síntese, o quadro da irrestrita terceirização irá gerar vultoso prejuízo aos trabalhadores, com real e efetivo empobrecimento das pessoas com os reflexos deletérios em suas vidas e, consequentemente, na economia e estabilidade do País.
Diante dessa realidade, como traduzir esse novo patamar jurídico e suas consequências para o mundo do trabalho?
A notável evidência é a de que se trata de um projeto do atual governo, que foi acolhido pela maioria do parlamento brasileiro, com o propósito de defesa de um novo paradigma jurídico de regulação das relações de trabalho no Brasil.
O projeto deixou transparente (apesar de não estar literalmente à vista) ser vital criar e assegurar todas as condições de segurança para os investidores, os donos do dinheiro, a fim de que possam aumentar seus negócios, sua lucratividade, sob a falácia de que assim poderiam gerar mais empregos.
Para tanto, seria necessário que o trabalhador figurasse na contabilidade como mais uma mercadoria, outra qualquer, disponível, barata e descartável a qualquer tempo. Em outras palavras, seria preciso desumanizar o trabalhador, transformando-o em mercadoria, em coisa posta na prateleira do mercado.
E foi exatamente isso o que aconteceu: sob os trâmites legais, diga-se por justiça, esse projeto de governo foi aprovado. Ou seja, a política governamental em curso fez a clara opção de reverter o paradigma até então vigente, que buscava assegurar o trabalho como fonte de crescimento e dignidade do trabalhador, para adotar um arcabouço jurídico-trabalhista que defende os interesses dos investidores e torna o empregado, o trabalhador, uma mercadoria à sua disposição.
Desnudada a opção política do governo atual, é necessário que as pessoas, na sua imensa maioria, trabalhadores, saibam e compreendam o real motivo da excessiva e abusiva flexibilização do trabalho temporário e principalmente da terceirização irrestrita, qual seja, defesa dos interesses dos investidores (donos do dinheiro), que exigem (na verdade sempre exigiram) que o trabalhador figure na contabilidade como mais uma mercadoria, disponível, barata e descartável a qualquer tempo.
Revelado o novo paradigma a sustentar o arcabouço jurídico-trabalhista, resta ao povo brasileiro, especialmente aos trabalhadores, dizer se concordam com esse novo modelo ou se querem outro modelo que, aliado ao desenvolvimento econômico, não deixe de assegurar o crescimento social e, consequentemente, o respeito aos direitos fundamentais trabalhistas e previdenciários.
Se a opção for por um sistema centrado no respeito aos direitos fundamentais trabalhistas e previdenciários, em um Estado Democrático de Direito, não há outra solução, isso só será possível com eleição de políticos honrados, comprometidos com uma ordem jurídica que reestabeleça a defesa do trabalho como fonte de dignidade e crescimento do ser humano, do trabalhador, mesmo porque
Na DEMOCRACIA, só a POLÍTICA salva!
*Procurador do Trabalho, lotado na Procuradoria do Trabalho em Juiz de Fora/MG
"Vossa Excelência está marcando um golaço!". Essa foi a saudação do Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ao anúncio, pelo Presidente da República, das medidas da reforma trabalhista propostas pelo governo federal. A "reforma" tem como principal ponto a possibilidade de prevalência do negociado sobre o legislado quanto a determinadas matérias, o que já vinha sendo defendido por representantes do governo e criticado por boa parte dos membros da magistratura trabalhista e dos Ministros do próprio TST, inclusive em notas e declarações dos representantes da ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
Além da magistratura trabalhista, o mesmo "apoio" teria vindo dos representantes dos trabalhadores. A suposta união a favor das medidas, que seria simbolizada pela presença de alguns representantes de Centrais no evento, foi enfatizada pelo Presidente da República, que disse que o anúncio era um "momento histórico", representativo da fraternidade absoluta e que lembrava o próprio Natal. O twitter do Ministério do Trabalho e Emprego registrou o agradecimento do Ministro às centrais sindicais pelo apoio.
Parece, contudo, que a ideia de flexibilização defendida no projeto foi de tal modo incorporada que se deu uma "flexibilizada" no que significaria "apoio". A CUT (Central Única dos Trabalhadores), que dentre as centrais é a que congrega maior número de representados, divulgou nota contrária às medidas, assim como a CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil). Diz a nota da CUT: “A reforma trabalhista anunciada nesta quinta-feira (22) pelo governo do [...] e [...] Temer é ineficaz, inoportuna, autoritária e não resolve o problema do Brasil. [...] É um golpe à classe trabalhadora”. Não sei para você, mas não me parece ser exatamente uma declaração de apoio.
A possibilidade de utilização da negociação coletiva para redução de direitos como a diminuição do intervalo para refeição ou, ainda, a possibilidade generalizada de aumento da jornada para doze horas (ou mais, pelo que consta da literalidade da proposta, que não fala em limites diários) representa um ataque às conquistas históricas dos trabalhadores. A expressão que sintetiza o debate não é feliz: a negociação coletiva sempre pôde se sobrepor à lei, quando é feita para acrescer direitos ao patamar legal mínimo. O que se pretende consolidar agora é a prevalência do negociado sobre o legislado para piorar a situação jurídica do trabalhador. Faltou explicar, de maneira convincente, o que essa possibilidade de negociação para pior poderia representar de melhoria para os trabalhadores ou no que contribuiria para a redução do desemprego.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) não tem dado margem a qualquer dúvida quanto à sua posição institucional, mesmo para quem adote criativas concepções de "apoio": a Procuradoria-Geral do Trabalho e a Coordenadoria Nacional de Promoção da Liberdade Sindical (CONALIS) do MPT vêm se pronunciando contra as propostas que pretendem institucionalizar a - chamemos por seu nome completo - prevalência do negociado sobre o legislado para piorar a situação dos trabalhadores. Os Procuradores do Trabalho conhecem e combatem, na prática, os efeitos deletérios de negociações dessa natureza, inclusive em alguns dos temas mencionados no anúncio da nova proposta, como aumento da jornada de trabalho ou redução do intervalo para refeição, com exposição dos trabalhadores a maiores riscos à saúde e à segurança.
Em 27 de maio de 2001, Petkovic marcou, aos 43 do segundo tempo, um memorável gol em cobrança de falta, que deu o título de campeão carioca ao Flamengo em cima do Vasco. Resignado, reconheço: foi um golaço. Afinal, essa é sempre uma conclusão objetiva, que se faz a partir da análise da jogada que resulta em gol, independentemente de se estar do lado da torcida que chora ou que comemora. Portanto, assim como um vascaíno pode fazer em relação ao gol do Pet, quanto à reforma proposta pelo governo concordo com a expressão usada no evento para, objetivamente, reconhecer: foi um golaço! Pena que é mais um a favor do retrocesso social. Mas que foi um golaço, ah, isso foi.
THIAGO GURJÃO ALVES RIBEIRO é Procurador do Trabalho.
Um grave problema brasileiro volta a ocupar as manchetes com as cenas de barbárie no presídio do Amazonas. O amontoado humano submetido a condições aviltantes, a pretexto de cumprimento de pena ou de meras prisões provisórias, viveu cenas incompatíveis com uma sociedade que se pretende mostrar ao mundo como civilizada.
Nota ainda mais trágica nesse quadro em que seres humanos são tratados como escória social, o Estado do Amazonas admite que 56% dos presos aguardam julgamento. Ou seja, vivem naquelas condições brasileiros que sequer foram condenados.
Ainda assim, o governador do estado não hesitou em dizer que entre os 56 mortos "não tinha nenhum santo". Parece conhecer o assunto. Os santos, quem sabe, estão do lado de fora. Talvez estejam administrando ou gerindo contratos públicos.
Algumas manifestações comparam nosso sistema prisional a estabelecimentos de segregação da idade média: as masmorras.
As fábulas infantis popularizaram a ideia de masmorras. Lembro de um antigo amigo que pronunciava a expressão carregando os “erres”. Ficava ainda mais tenebroso imaginar o ambiente de reclusão situado nos subterrâneos de castelos. Sempre remetendo à ideia de cômodos escuros e lúgubres, em que padeciam os malfeitores ou inimigos da corte.
Nos filmes que reproduzem o cenário do período medieval os espaços de detenção são sempre escuros e sombrios. Não lembro de ter visto, nas telas, masmorra pior do que algumas das celas do nosso sistema carcerário.
É oportuno lembrar que no Brasil, formalmente, as masmorras não são aceitas nem na legislação penal militar, que admite a pena de morte (em situação de guerra). De forma expressa, em respeito à integridade do preso, o Código Penal Militar estabelece que a prisão deve se dar em local limpo e arejado, onde o detento possa repousar durante a noite, sendo proibido o seu recolhimento a masmorra, solitária ou cela onde não penetre a luz do dia (art. 240).
Talvez os nossos cárceres pudessem ser comparados a pocilgas: local de criação de suínos. Na parábola do Filho Pródigo (Lucas 15:16) o texto bíblico relata o desejo do filho, arrependido dos flagelos de uma vida miserável, de ser aceito de volta ainda que tivesse que se submeter à mais humilhante condição dentre os animais da propriedade de seu pai. Admitia o desejo de “encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam”.
Mas isso também não parece adequado. Essa não é uma imagem que possa ser utilizada como comparação nos dias de hoje. A moderna suinocultura apresenta sofisticados mecanismos de controle da nutrição e do manejo dos animais. As instalações são planejadas e equipadas com a preocupação de propiciar condições ambientais adequadas. O controle higiênico e sanitário é rigoroso. Nada parecido com o que está sendo mostrado nas entranhas do nosso sistema prisional.
À medida que as matérias investigativas se aprofundam, começam a vir à tona dados de investigações em curso, do Ministério Público, que indicam outro problema. O Estado do Amazonas terceirizou a administração dos presídios. Serviços de gestão, operação e manutenção foram repassados a empresas. Mais do que isso, algumas dessas empresas inclusive teriam doado dinheiro à campanha eleitoral do Governador que parece entender de santos. E prosseguem as denúncias. O custo mensal dos “serviços” contratados chegaria ao despropositado valor de R$ 5 mil mensais para cada preso. E a empresa também atuaria prestando os mesmos “serviços” em outros estados.
A denúncia guarda semelhança com o que parece ser uma suspeita troca de favores entre agentes públicos e gestores de negócios privados, a confirmar, divulgada em meados de 2016. O ex-senador do DF (cassado) Luiz Estevão teve gravadas conversas com uma parlamentar em que cita deputados da Câmara Legislativa, ligados a empresas que prestam serviços terceirizados ao Governo de Brasília - contratos milionários. O grupo é chamado de “Bancada da Fatura”.
Os indícios de promiscuidade nessas relações não são novos. Ainda assim, impressiona que a ganância e a falta de escrúpulos nos “negócios” tenham chegado ao ponto de comprometer o funcionamento de unidades prisionais.
O triste capítulo dessa história macabra – que está longe de ser um acidente - dá à sociedade a oportunidade de conhecer, de forma trágica, um pouco dos interesses que estão por trás da terceirização. Não se trata de modernidade e muito menos de santidades. Trata-se de precarização, de ganância e de desprezo pela vida humana. O ser humano utilizado como meio para a irresponsável obtenção de vantagens econômicas.
LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho.