* Artigo escrito pelo procurador do Trabalho Rodrigo Carelli e pelo presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Guilherme Feliciano
Uma pesquisa deve levantar véus (“desvelar”) ao invés de sobrepô-los (“revelar”, em estrita etimologia). Na contramão dessa premissa, estudo recente publicado pela revista “Estudos Econômicos”, da Universidade de São Paulo, traz a lume conclusões narrativas que parecem destoar dos seus próprios números em torno do fenômeno da terceirização de serviços e da sua realidade remuneratória.
O estudo revela que o salário do empregado, quando migra do trabalho formal direto para a terceirização, tem uma redução média de 2,3%. Segundo os autores, a pesquisa decorreu da observação da realidade de mais de 13 milhões de trabalhadores entre os anos de 2007 e 2014.
Dois fatos, a propósito, chamam a atenção.
O primeiro se refere ao descompasso entre tais resultados e os obtidos em duas outras apurações semelhantes.
Levantamento realizado em 2016 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), por exemplo, mostra que essa variação negativa atinge 11,5%. Da mesma forma, pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 2011 apontava um número muito superior, de 27,1% de queda.
As diferenças entre os diagnósticos podem ser explicadas, entre outras razões, pelas diferentes metodologias adotadas. O modo como os dados da derradeira pesquisa vêm sendo divulgados, contudo, merece censura. O estudo parece ser utilizado pelos seus autores para atenuar o tamanho do problema e, mais grave, para induzir veículos de comunicação e seus usuários a erro, sinalizando vezo perigoso de tendência.
Reportagem publicada na Folha (“Mercado”, 3/9) comprova essa análise. Os pesquisadores defendem que o objetivo é desmontar um discurso alarmista de que a terceirização é precarização. Ora, ainda que em patamares muito menores do que outros levantamentos, o estudo revela justamente o contrário.
Mais importante, todavia, que a questão de interpretação dos fatos sociais será agora a das recentes alterações da legislação, com a sanção das leis federais 13.429/2017 e 13.467/2017.
Há quem defenda que, sob as novas normas, está autorizada a terceirização de quaisquer atividades privadas, sob quaisquer condições. Poderíamos ter, por exemplo, na linha de produção de uma montadora, um trabalhador direto e um trabalhador terceirizado, nas mesmas funções, com salários diversos.
Independentemente do apuro e da metodologia o cerne da questão jurídica será este: tal compreensão das leis está conforme a Constituição da República? É razoável supor que, sob o manto da isonomia e da não-discriminação, um trabalhador possa ser demitido da empresa tomadora e recontratado, para a mesma função, por uma empresa terceirizada, recebendo remuneração reduzida?
O trabalho não é mercadoria de comércio, reza o preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (1919), de que o Brasil é país fundador.
Mesmo sob o novel paradigma legislativo, tudo aquilo que estudo falha em revelar, como elemento do mundo do ser, é precisamente aquilo que o sistema jurídico – e, com ele, o subsistema Judiciário – tem de fazer valer, como elemento do mundo do dever ser: a terceirização de serviços, admita-se ou não em “atividades-fim”, não poderá precarizar. Não poderá discriminar. E tampouco poderá fraudar.
*Rodrigo Carelli é procurador do Trabalho no Rio de Janeiro e professor da UFRJ.
*Guilherme Feliciano é juiz do Trabalho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e professor da Faculdade de Direito da USP;
*Por: Santos Carvalho, José Reis
Nessa exposição de ideias, teceremos algumas considerações acerca da nova ordem jurídica aplicável às relações de trabalho no Brasil, a revelar a gravíssima ruptura do paradigma de proteção ao trabalho como fonte de dignidade da pessoa humana, notadamente a partir da alteração legislativa que regulamenta o trabalho temporário e permite a terceirização irrestrita no círculo das pessoas jurídicas de direito privado - Lei 13.429 de 31 de março de 2.017 -, arrematando com a importância da política para consolidação das aspirações democráticas do povo.
No que concerne ao trabalho temporário, sua essência sempre foi a de suprir necessidades da empresa contratante, em situações bem definidas - necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou à acréscimo extraordinário de serviços-, para execução de suas atividades-fins, por curto espaço de tempo. O novo regramento, todavia, impõe enorme prejuízo aos trabalhadores, seja em razão das novas e casuísticas circunstâncias flexibilizatórias introduzidas, seja em razão da abusiva amplificação do prazo permitido para sua utilização.
Concede salvo-conduto à empresa contratante para atender sua demanda complementar de serviços, aí incluída a decorrente de fatores previsíveis de natureza intermitente, periódica ou sazonal, tipos abertos fomentadores de insegurança jurídica.
Agregue-se a esse fator, a genuína subversão do caráter célere dessa modalidade, quando a admite pelo prazo excessivo de cento e oitenta dias, prorrogável por mais noventa dias, autorizando, sem limites, que o trabalhador possa ser “colocado à disposição da mesma empresa” após três meses do término do contrato anterior.
Ou seja, poderá o trabalhador “ser disponibilizado” por nove meses, afastado três meses a cada repetição do ciclo e “redisponibilizado” à mesma empresa-contratante após esse afastamento, moto-contínuo, indefinidamente.
Nessa situação, fácil perceber o prejuízo de todos os trabalhadores envolvidos, bem como a contaminação do ambiente de trabalho diante do clima de insegurança, de medo, dos empregados da tomadora de serviços, que podem, a qualquer tempo, ser substituídos facilmente pelos trabalhadores "disponibilizados" pela empresa contratada de trabalho temporário.
No que diz respeito à contratação dos serviços de empresas prestadoras, a nova lei dispõe que a terceirização está apta a produzir efeitos em se tratando de prestação de serviços determinados e específicos, não impondo qualquer restrição ou vedação, salvo a de que as atividades não podem ser distintas das que foram objeto do contrato.
Vale dizer, se se tratar de atividade, qualquer que seja sua natureza, lícita por óbvio, constante do contrato de prestação de serviços, autorizada está sua execução. Diante do texto legal, portanto, no âmbito privado, não há margem para dúvidas: a terceirização da atividade-fim está autorizada, circunscrita ao círculo das pessoas jurídicas de direito privado (art. 5º, II, da CF/88). Nessa perspectiva, dizer que o ambiente de trabalho tenderá a ser hostil, totalmente contaminado, com empregados (principalmente os com tempo razoável e remunerações maiores) vivenciando genuíno clima de terror com a possibilidade de demissão e substituição por outros com remunerações menores, "fornecidos" pela empresa contratada, é falar o óbvio. Dizer que os acidentes de trabalho, inclusive os fatais, em sua grande maioria, atingem os trabalhadores terceirizados, é fato incontestável, basta verificar os registros atuais. O mesmo se diga quanto à substancial redução da remuneração e benefícios a que fazem jus os terceirizados, aliada à sobrejornada excessiva imposta à esse contingente.
Em síntese, o quadro da irrestrita terceirização irá gerar vultoso prejuízo aos trabalhadores, com real e efetivo empobrecimento das pessoas com os reflexos deletérios em suas vidas e, consequentemente, na economia e estabilidade do País.
Diante dessa realidade, como traduzir esse novo patamar jurídico e suas consequências para o mundo do trabalho?
A notável evidência é a de que se trata de um projeto do atual governo, que foi acolhido pela maioria do parlamento brasileiro, com o propósito de defesa de um novo paradigma jurídico de regulação das relações de trabalho no Brasil.
O projeto deixou transparente (apesar de não estar literalmente à vista) ser vital criar e assegurar todas as condições de segurança para os investidores, os donos do dinheiro, a fim de que possam aumentar seus negócios, sua lucratividade, sob a falácia de que assim poderiam gerar mais empregos.
Para tanto, seria necessário que o trabalhador figurasse na contabilidade como mais uma mercadoria, outra qualquer, disponível, barata e descartável a qualquer tempo. Em outras palavras, seria preciso desumanizar o trabalhador, transformando-o em mercadoria, em coisa posta na prateleira do mercado.
E foi exatamente isso o que aconteceu: sob os trâmites legais, diga-se por justiça, esse projeto de governo foi aprovado. Ou seja, a política governamental em curso fez a clara opção de reverter o paradigma até então vigente, que buscava assegurar o trabalho como fonte de crescimento e dignidade do trabalhador, para adotar um arcabouço jurídico-trabalhista que defende os interesses dos investidores e torna o empregado, o trabalhador, uma mercadoria à sua disposição.
Desnudada a opção política do governo atual, é necessário que as pessoas, na sua imensa maioria, trabalhadores, saibam e compreendam o real motivo da excessiva e abusiva flexibilização do trabalho temporário e principalmente da terceirização irrestrita, qual seja, defesa dos interesses dos investidores (donos do dinheiro), que exigem (na verdade sempre exigiram) que o trabalhador figure na contabilidade como mais uma mercadoria, disponível, barata e descartável a qualquer tempo.
Revelado o novo paradigma a sustentar o arcabouço jurídico-trabalhista, resta ao povo brasileiro, especialmente aos trabalhadores, dizer se concordam com esse novo modelo ou se querem outro modelo que, aliado ao desenvolvimento econômico, não deixe de assegurar o crescimento social e, consequentemente, o respeito aos direitos fundamentais trabalhistas e previdenciários.
Se a opção for por um sistema centrado no respeito aos direitos fundamentais trabalhistas e previdenciários, em um Estado Democrático de Direito, não há outra solução, isso só será possível com eleição de políticos honrados, comprometidos com uma ordem jurídica que reestabeleça a defesa do trabalho como fonte de dignidade e crescimento do ser humano, do trabalhador, mesmo porque
Na DEMOCRACIA, só a POLÍTICA salva!
*Procurador do Trabalho, lotado na Procuradoria do Trabalho em Juiz de Fora/MG